quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

É EFEITO DA DESILUSÃO

O blog está “devagar”. O último artigo foi publicado em novembro do ano passado. Os colegas cobram. Alguns leitores cobram. Eu me cobro. Mas novos textos não saem...

Não, não é por falta de ideias. Também não é por falta de tempo para escrever. Um blog dedicado à análise da política nacional, especialmente nos dias em que vivemos, teria assunto para vários artigos todos os dias. E tempo para escrevê-los a gente sempre encontra. Afinal, passar madrugadas e finais de semana escrevendo e lendo o que os outros escrevem é o que de melhor os professores sabem fazer. Talvez por isso lhes falte tempo até mesmo para “debater” com a crescente parcela da sociedade que lhes toma como o mais numeroso dos grupos de “vagabundos”.

Em meu computador há uma pasta específica com ideias, títulos e rascunhos de textos para o blog. Atualizo-a quase todos os dias. São mais de uma centena de “projetos” de artigos a serem escritos. Bolsonaro, bolsonarismo, Congresso, centrão. Negacionismo, terraplanismo, desmonte da ciência e da educação. Fake news, desinformação, manipulação. Esquerda, direita, liberalismo, “antipolítica”, “nova política”, “velha política”. Neofascismo, cultura do ódio, “cancelamentos”, violência virtual. Não faltam assuntos.

Vários textos estão iniciados. Alguns quase concluídos.

Mas a realidade diária parece torná-los incompletos, desimportantes, “desatualizados”... inúteis. Afinal, o país que eu dedico a vida a estudar resolveu se enfiar no maior buraco que encontrou. E, insatisfeito com as dimensões da acomodação, resolveu continuar cavando, orgulhoso do fosso cujo aprofundamento se mostra, a cada dia, ser um projeto de nação.

Como discutir a democracia brasileira e suas possibilidades de aprimoramento quando ela desmorona diariamente diante de nossos olhos distraídos? Como propor reflexões filosóficas e sociológicas sobre a cultura do ódio quando você se torna alvo do ódio apenas por mencionar as palavras “filosofia” e “sociologia”? Como analisar os efeitos sociais e políticos das fake news se o simples fato de publicar algo sobre o assunto faz de você o alvo de novas fake news?

Como apontar os efeitos nefastos e desumanos da violência virtual, se a publicação de um texto analisando o tema consegue apenas despertar justamente a violência de incontáveis “cidadãos de bem” que se sentem diretamente atingidos?

Como publicar um artigo sobre a urgência de defendermos, no país, a constituição e as instituições democráticas, se no dia em que você planejou concluir o texto é anunciado que o Congresso terá como presidente da Comissão de Constituição e Justiça uma deputada cuja popularidade se deve justamente ao fato de ser defensora ferrenha da ruptura institucional, da violação da constituição, além de estar na lista dos maiores divulgadores de fake news do país e de ser investigada por financiar, com dinheiro público, atos antidemocráticos?

Como escrever sobre o “centrão”, sobre como ele é e como age, se os noticiários mostram isso didaticamente todos os dias e ainda assim a maior parte das pessoas acha tudo normal?

Não, não é falta de assunto. Nem falta de tempo. A escassez de textos no blog é por desilusão. E por cansaço.

A Ciência Política sempre foi, para mim, além de uma grande paixão, um universo fascinante de possibilidades para ver o mundo de modo diferente, de compreender coisas que a maioria das pessoas não compreende, e de ver de modo diferente aquilo que todos veem.

Ainda continuo apaixonado pela Ciência Política, e sempre acharei fascinante esse universo de possibilidades que ela nos dá. Mas hoje é justamente esse universo de ferramentas analíticas um dos motivos da desilusão.

Compreender os movimentos políticos, as estratégias, as mudanças nos cenários partidários, eleitorais, parlamentares e de governo. Analisar dados, estatísticas, decisões políticas. Fazer projeções e vê-las se confirmar. Acompanhar pesquisas e análises de outros pesquisadores. Ver a democracia funcionar, compreender as sutilezas de suas engrenagens e poder, mesmo que singelamente, contribuir nos debates sobre seu aprimoramento. São coisas que sempre estarão entre as mais empolgantes para mim.

O cansaço e a desilusão vêm justamente de saber que são essas engrenagens da democracia brasileira que estão se quebrando, se esfacelando devagar e continuamente, enquanto os brasileiros se distraem com fake news sobre vacina, com o bafo fétido das falas presidenciais, com incontáveis especialistas de redes sociais, influenciadores mal informados e mal intencionados, com o big brother.

Devo estar entre as poucas pessoas que não gostam do filme Titanic. As razões não vêm ao caso agora. Mas sempre achei que a melhor cena é aquela dos violinistas que continuam a tocar, inabaláveis, sua música, enquanto o navio afunda. O fazem porque, na certeza do naufrágio inevitável, tomam a nobre decisão de continuar tocando, oferecendo aos passageiros e a si mesmos um alento, na forma de melodia, enquanto o desastre se consuma.

Os brasileiros estão em situação muito semelhante. Continuam a tocar suas vidas, inabaláveis, enquanto o país afunda no precipício que eles ajudaram a cavar. A diferença é que nós, ao contrário dos violinistas do Titanic, parecemos não ter consciência do que está acontecendo ou, se temos, insistimos em negar a realidade, talvez por ser dura demais.

O Brasil afunda. A democracia se esfacela. A pandemia avança. As fake news dominam. As mentiras pautam a política e a vida cotidiana. O autoritarismo é aplaudido. Tornozeleiras eletrônicas viraram adereço nos corredores e gabinetes de Brasília. A “velha política” juntou-se com a necropolítica e, juntas, triunfaram. E nós nos dividimos entre os que aplaudem tudo isso, os que criticam e, por isso, são apedrejados pelos que aplaudem, e um terceiro grupo, que se acha melhor do que os outros dois e, e por isso, assiste sem fazer nada.

O Brasil afunda. E em vez de comprar botes salva-vidas, optamos por comprar mais armas para disputar os poucos que existem.

O que resta a um pobre cientista político para escrever em um pobre blog sobre política?