quarta-feira, 3 de julho de 2019

ERA UMA VEZ NA AMÉRICA...


Proponho aos raros leitores um exercício. A partir de uma lista de características de seu governo e de sua situação política recente, que passaremos a descrever, tentemos deduzir de qual país estamos falando.

O presidente desse país é uma mistura de líder messiânico com caricatura de super-herói. Governa apostando na radicalização ideológica, em teorias conspiratórias, na deslegitimação dos partidos e das instituições políticas tradicionais e no ataque às “elites” do país.

Se apresenta como alguém que vem de “fora do sistema” e, portanto, imune ao seu “modo corrupto de funcionar”. No lugar de grandes reformas estruturais, prefere a implantação de políticas pontuais e de forte cunho ideológico, voltadas a segmentos sociais específicos e essencialmente populistas. O combate aos inimigos ideológicos, reais ou imaginários, é sempre mais importante do que implantar políticas voltadas aos grandes problemas do país.

O governo conta com forte apoio de lideranças militares, que além de contribuírem ocupando cargos de comando, emprestam ao presidente uma aura de moralidade e patriotismo com a qual reforça seu messianismo e, por consequência, sua popularidade.

A crítica ao governo é sistematicamente tomada como afronta à vontade do povo “manifesta nas urnas”. Jornalistas e intelectuais – com destaque para professores – são acusados de serem contra o governo e, portanto, contra o povo, de não serem produtivos e de tratarem de temas irrelevantes para a sociedade. Políticos de oposição são associados a organizações internacionais voltadas ao domínio da nação que buscam exploração de seus recursos naturais.

Incapaz de garantir a segurança da população, o governo prega que as pessoas devam se levantar e lutar, pela própria segurança e pelo governo, sempre apresentado como vítima de conspirações e ataques, da oposição e de organismos internacionais mal intencionados. Se para isso for necessário que a população se arme, então deve fazê-lo, sob o abrigo da lei, mesmo que lhe falte emprego e dinheiro para comprar pão.

O Poder Legislativo é frequentemente desqualificado, cooptado e acusado de pensar mais em si mesmo do que no povo. O Judiciário, em sua maior parte, atua de forma enviesada em favor do governo, seja fazendo vistas grossas aos crimes e desmandos que ele comete, seja atropelando a lei e os processos para criminalizar e condenar opositores.

A Suprema Corte do país é progressivamente acuada, pelo governo e pela opinião pública por ele manipulada com a ajuda de apoiadores influentes. Seus integrantes são acusados de conspirarem em favor dos “corruptos”, e tentativas de recomposição de seus quadros em favor de nomes ligados ao governo são cada vez mais frequentes.

Acredito que já é suficiente. A essa altura já é possível que cada leitor tenha imaginado de quem falamos. Os que imaginaram Nicolás Maduro e seu desastroso governo na Venezuela acertaram. Como também acertaram aqueles que deduziram estarmos falando de Jair Bolsonaro e sua comédia de erros em terras tupiniquins.

Os “comunistas” por aqui, os “americanos” por lá. O petróleo deles, a nossa Amazônia. A direita corrupta na Venezuela, a esquerda corrupta no Brasil. A CIA no vizinho do Norte, as ONGs interessadas nos nossos recursos naturais... Os elementos mudam, os sinais se repetem. O conteúdo é diferente, a forma é a mesma.

Não é por acaso que Bolsonaro e seu governo odeiam tanto o PT, da mesma forma que o PT odeia Bolsonaro e seu governo. Eles são os dois lados da mesma moeda, são os opostos que se tocam e se confundem no círculo político da radicalização ideológica.

Já escrevi neste blog que para compreendermos o governo Bolsonaro não bastam as teorias políticas. Precisamos de Freud tanto quanto de Maquiavel. O ódio do presidente messias ao PT é, acima de tudo, a externalização daquilo que o define, das suas características mais fundamentais. O ódio do PT a Bolsonaro é a projeção de seu próprio modo de fazer política, identificado no governo do qual é oposição.

Bolsonaro e o PT não são extremos distantes num continuum imaginário de formas de fazer política. São extremos que se tocam em um arco que se fecha em si mesmo. E como a incapacidade de fazer autocrítica é mais uma das características que compartilham, há grande probabilidade de que passem quatro anos atacando um ao outro, a despeito dos necessários debates sobre os grandes problemas do país.

O problema é que, como acontece em todas as guerras, é na cabeça do povo que caem as bombas.