quarta-feira, 8 de abril de 2020

LIÇÕES DE UMA PANDEMIA


Em parceria com Anderson Ribeiro, a quem credito a ideia geral do texto e também a maior parte de seu conteúdo.

Em 1919, em edição do dia 30 de maio, a Revista Science publicava um artigo com o título “As lições da Pandemia”, escrito por G. A. Soper. O autor destaca, tratando da “Gripe Espanhola”, que o mais marcante daquela epidemia, que devastou o mundo entre 1918 e 1919, matando mais de 50 milhões de pessoas, era o grande desconhecimento sobre a doença, sobre sua origem e sobre como pará-la.

No artigo de 1919, Soper elencava ainda os fatores que atrapalhavam a prevenção:

1 A indiferença do público: principalmente pela confusão com outras infecções respiratórias de menor potencial, como o resfriado comum.
2 - O caráter individual das medidas que precisavam ser tomadas: não está no comportamento padrão das pessoas se isolar como medida de proteção ao outro, especialmente quando o indivíduo acredita que só tem um simples resfriado, com pouca ou nenhuma chance de virar uma infecção grave.
3 - A natureza altamente infecciosa das doenças respiratórias: com variados tempos de incubação, com as pessoas podendo transmitir a doença antes mesmo de perceber ou apresentarem sintomas.

Um século depois estamos nós, novamente, enfrentando uma epidemia de proporções globais, uma pandemia. Com potencial muito mais devastador do que H1N1, SARS, MERS, e mesmo HIV, a pandemia da COVID-19 é, certamente, é maior dos últimos 100 anos.

Estamos em situação muito diferente daquela experimentada em 1919 em termos de conhecimento: sabemos o que é a doença, conhecemos minimamente seus mecanismos de transmissão e a forma como age nos organismos infectados. Muitos esforços mundiais estão sendo feitos para pará-la. E embora ainda não tenhamos descoberto um tratamento eficaz, sabemos que o isolamento social é uma estratégia bastante eficiente de controle da propagação, o que é fundamental para assegurar atendimento médico-hospitalar para os casos graves da doença.

Ao longo do século XX o desenvolvimento das pesquisas científicas permitiu conhecer os mecanismos de transmissão, identificar os patógenos, desenvolver vacinas e/ou medicamentos capazes de controlar os efeitos, criar modelos preditivos do comportamento do contágio e muito mais, prevenindo ou atenuando os impactos de uma ampla gama de doenças. Com exceção do HIV, todas as demais epidemias tiveram efeitos muito menores do que os da Gripe Espanhola, por exemplo.

Mesmo assim, estamos vendo uma epidemia sacudir o mundo, expor muitas características e fragilidades dos nossos sistemas político e social que ficam soterradas no cotidiano, na nossa rotina que não proporciona momentos de parada, de reflexão, e que agora se escancaram. Se as pesquisas no campo da medicina aumentaram muito nossa capacidade de lidar com a dimensão biológica das doenças, nossa compreensão de suas conexões com o mundo social, econômico, político e cultural ainda são as mesmas de 1919, ou até piores.

A má distribuição de renda e a falta de acesso a condições dignas de vida entram em evidência em momentos como esse. A falta de segurança social, a precariedade do emprego e do trabalho informal, as relações de trabalho desequilibradas, são fatores que se escancaram como nunca. Os problemas de moradia, precária ou inexistente para grande parte da população, de falta de saneamento básico e de políticas preventivas de saúde ganham destaque, pois expõem a situação que, para a grande maioria, se tornou o “normal”. Nossos centros avançados de medicina de ponta fazem transplantes de coração, de mãos e de medula, mas a maior parte da população padece de doenças decorrentes da falta de saneamento, de água potável, de alimentação básica.

A concentração de pessoas em favelas e nas periferias das grandes cidades é fator que preocupa médicos, epidemiologistas, cientistas em geral e autoridades públicas sérias. A escandalosa falta de saneamento básico nesses locais aumenta exponencialmente os fatores de risco. A necessária medida de distanciamento, que obriga muitas pessoas a ficarem em suas casas, gera impactos significativos para os que trabalham na informalidade e que dependem da atuação diária para o seu ganha-pão e não têm nenhum tipo de seguridade social ou plano de previdência, dado que as condições de exploração a que são submetidas fazem com que mal ganhem para a comida do dia. Para muita gente em nosso país, não trabalhar de dia significa não comer de noite.

Salta aos olhos o despreparo dos órgãos governamentais, especialmente quando atravessamos um período onde a ordem do dia são os cortes no orçamento público e o encolhimento do Estado em nome da fé no mito do mercado como solução para tudo. Hipnotizado pelo mantra do ultraliberalismo, nosso governo central paralisa sem rumo, e a única coisa que consegue fazer bem é lamentar que as reformas em tramitação precisarão esperar. O stress dos especuladores, que estão perdendo dinheiro na bolsa de valores, é visível no semblante dos responsáveis pela economia nacional. O desespero dos doentes e dos pobres que morrem tanto pelo vírus quanto pela fome, não.

Fica claro também que existe uma rede interligada de ações públicas que permitem o desenvolvimento da iniciativa privada, dando-lhe estrutura e sustentação. Sem educação pública, mães e pais não têm onde deixar seus filhos, muito menos condições de lhes dar uma educação de qualidade por meio de home schooling. Sem serviço público de saúde, o atendimento aos trabalhadores em geral seria precário ou inexistente, submetendo a maioria da população a condições ainda piores de vida, o que traria impacto para a força de trabalho que é demandada para alavancar a economia nacional.

Curiosamente esses serviços básicos, como educação pública e amparo social aos mais vulneráveis, têm sido fortemente atacados e desmantelados nos últimos anos no Brasil, em nome de uma concepção ultraliberal de sociedade onde o Estado deve ser estrategicamente ausente e a iniciativa privada resolveria todos os problemas do mundo. Isso, claro, se todos os problemas do mundo forem os seus problemas.

Ironicamente, a pandemia que enfrentamos tem mostrado a importância de sistemas públicos de saúde e de educação, de investimento em pesquisa e desenvolvimento científico, ao tempo em que evidencia o preço que se paga quando essas questões são negligenciadas e sucateadas. O sistema único de saúde (SUS) permite uma rápida coordenação de esforços em todos os estados e municípios do país, dado que já tem estrutura e organização, possibilitando uma ação eficiente frente aos efeitos da pandemia. Também permite a coordenação de medidas preventivas que são, no atual momento, a melhor medida que temos para mitigar o contágio.

Ao mesmo tempo, o investimento em ciência e desenvolvimento científico e tecnológico, em todas as áreas do conhecimento, se mostra não só necessário, mas absolutamente indispensável. A dependência de tecnologia importada, de conhecimento produzido em outros lugares, de insumos para pesquisa e mesmo de produção local de derivados dessas pesquisas, pode ser a maior fragilidade do país em um momento de crise sanitária. Felizmente ainda temos um sistema de pesquisa e produção de conhecimento funcionando, embora a duras penas e graças à determinação dos pesquisadores, muitas vezes com sacrifícios pessoais, nas universidades públicas e nos institutos de pesquisa. A rede de pesquisa nacional mostra toda sua capacidade e competência ao responder agilmente às demandas e apresentar soluções inovadoras e inteligentes, ao mesmo tempo em que mostra os problemas decorrentes do descaso e do sucateamento enfrentado nos últimos anos.

Soper diz que a grande lição da pandemia de 1919 foi chamar a atenção para a prevalência de doenças respiratórias em tempos comuns, à indiferença com que são comumente consideradas e à incapacidade, na época, de proteção em relação a elas. Que, depois de sobreviver à COVID-19, tenhamos aprendido lições importantes que possam nos ajudar a repensarmos nosso modelo de sociedade.

Que aprendamos que os efeitos de uma pandemia vão muito além dos sintomas causados pelo vírus na saúde das pessoas que ele infecta. Eles afetam todas as dimensões da vida, desde a economia e a política até as relações cotidianas mais básicas. E seus maiores estragos, invariavelmente, se dão entre os mais pobres.

Que aprendamos que quando estamos no meio de uma pandemia não adianta cobrar dos cientistas que apresentem curas e vacinas, se em tempos “normais” os tratamos como inimigos e lhes retiramos as condições mínimas para pesquisar. Que não esqueçamos que se o impacto da pandemia está sendo minimizado em nosso país, é graças ao SUS, é graças ao sistema público e aos servidores públicos que nele trabalham, e que por todo o país hospitais privados e planos de saúde têm sido denunciados por negar atendimento às pessoas.

Muito tem se dito que após a pandemia nada vai voltar ao que era antes, ao “normal”. Que assim seja, pois como também tem se repetido muito nos últimos dias, foi o normal que nos levou a situação em que estamos.


Se não pensarmos, enquanto sociedade, em mecanismos de combate do que se tornou o “normal” e repararmos injustiças sociais históricas, estaremos fadados, no futuro, como disse Cazuza, a repetir o passado.