quinta-feira, 29 de agosto de 2019

DA ESTUPIDEZ HUMANA


No último dia 27, João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo, publicou um belo texto sobre a estupidez humana. Ele parte de um clássico sobre o tema, do qual li resenhas quando estava na faculdade (ainda não há traduções no Brasil) e ao qual tenho voltado com frequência nos últimos tempos. Trata-se do italiano Carlo Cipolla e sua obra que, em uma tradução livre, traz como título: “Leis Básicas da Estupidez Humana”.

Considerando os tempos em que vivemos, o tema é importante demais para que o receio de ser repetitivo em alguns pontos (em relação ao texto de Coutinho) seja motivo para não tratar dele. É o que faço hoje.

No modelo de Cipolla, são três as leis básicas da estupidez. A primeira afirma que é recorrente, em todas as sociedades, que se subestime o número de estúpidos em circulação. Há muito mais estúpidos por aí do que costumamos imaginar. E a forma como nos espantamos ao encontrar um representante da espécie só mostra o quanto subestimamos seu contingente.

A “segunda lei de Cipolla” afirma também ser equívoco imaginarmos que a estupidez – ou sua diminuição – tenha alguma relação com a educação ou com a posição dos indivíduos na hierarquia social. Os estúpidos são um universal humano, portanto presentes em todos os segmentos, em todas as classes e níveis educacionais, em todos os setores, em proporções relativamente estáveis.

A estupidez não é algo que se combate ou se anula com educação formal. Diplomas e honrarias acadêmicas, por exemplo, em nada diminuem nem o número de estúpidos nem seus níveis de estupidez. Ao contrário, é comum que títulos e diplomas a acentuem significativamente, pois ainda pior que um estúpido é um estúpido com status.

A “terceira lei” é, acredito, a que mais nos ajuda a pensar os estranhos tempos em que vivemos. Ela apresenta uma tipologia segundo a qual os estúpidos podem ser classificados em quatro categorias gerais, definidas especialmente a partir do impacto que suas ações produzem sobre si mesmos e sobre os outros: os inaptos, os bandidos, os inteligentes e, claro, os estúpidos. Vamos a cada um deles.

Uma pessoa inapta se aproxima muito do que costumamos chamar de ingenuidade. Quando age, tende a beneficiar os outros, geralmente prejudicando a si mesma. Seja por desconhecimento ou de forma intencional, as pessoas desse grupo são, com frequência, manipuladas pelos outros, exploradas, com baixa autoestima e bastante influenciáveis. Também estão nesse grupo os altruístas e aqueles que dedicam suas vidas a causas humanitárias e ambientais, por exemplo.

O bandido é o modelo oposto do inapto. Quando age, prejudica os outros para beneficiar a si mesmo. O faz por meio da manipulação, da falsidade, do engano, da mentira. Nesse grupo estão desde enganadores e golpistas até psicopatas assassinos e sequestradores, passando por criminosos do colarinho branco e mentirosos do cotidiano.

O inteligente é aquele indivíduo que, ao agir, consegue produzir benefícios a todos ou, ao menos, a parte da sociedade. Estão nesse grupo as pessoas que possuem a rara capacidade de agir pensando no interesse público, essa coisa tão em baixa ultimamente. Essa habilidade decorre, fundamentalmente, da capacidade de agir racionalmente, de ponderar, de considerar as variáveis envolvidas e, então, tomar decisões visando o bem coletivo. Pois ao fazê-lo o indivíduo inteligente, como parte do público, também se beneficia (por isso é inteligente!). São, por exemplo, as habilidades que os gregos já consideravam fundamentais para o exercício da política, para a participação na polis.

Por fim, o que define o estúpido é a capacidade de, ao agir, prejudicar os outros e, ao mesmo tempo, não extrair daí nenhum benefício para si mesmo. Ao contrário, com frequência, entre os resultados de suas ações estão consequências negativas também para ele próprio. É a quase completa irracionalidade do estúpido que o torna uma ameaça, tanto para a sociedade quanto para si mesmo. É por isso que Cipolla vê no tipo estúpido a maior ameaça social, o indivíduo mais perigoso de todos. Inclusive mais perigoso que o bandido.

O iluminismo disseminou a noção – não totalmente verdadeira, segundo Cipolla – de que a racionalidade é uma característica universal. Costumamos pensar que não faz sentido alguém agir de modo que, ao fazê-lo, prejudicaria a si mesmo. Por isso é tão difícil compreendermos o comportamento (do) estúpido.

Podemos lamentar e nos consternar com o comportamento dos inaptos; admiramos os inteligentes e sua capacidade de agir racionalmente; e conseguimos até mesmo compreender, inclusive cientificamente, a cabeça do bandido. Mas os estúpidos fogem ao nosso entendimento. Eles resistem não apenas à nossa capacidade de empatia, mas também aos nossos esforços de compreensão.

O comportamento estúpido não segue nenhuma lógica, não possui qualquer elemento de racionalidade que permita analisá-lo com as ferramentas do pensamento científico ou filosófico. Ele nos espanta todos os dias, e nossa dificuldade de encontrar qualquer sentido naquilo que ele faz é permanente.

É claro que a tipologia de Cipolla não é a última palavra sobre a natureza humana, nem está imune a críticas e limitações. Muitos já a atacaram, justamente por ser uma tentativa de tipificar o comportamento humano, categorizando as pessoas. Contudo, não se trata de assumir o seu modelo como a verdade última sobre o mundo, mas como uma ferramenta de interpretação da sociedade em seus diversos aspectos.

Suas “leis” podem ser úteis para olharmos o cotidiano a nossa volta e as pessoas que fazem parte dele. Pode servir para entendermos, por exemplo, que aquele nosso colega de trabalho insuportável é um estúpido, não um bandido. Ou podem nos ajudar a compreender o contexto político em que nosso país está enredado.

Como diz Coutinho, se fizermos um exercício simples de “aplicação” do modelo de Cipolla ao nosso mundo político, rapidamente perceberemos que “políticos inteligentes são raros; políticos inaptos, daqueles que beneficiam os outros pelo sacrifício dos seus interesses, são mais raros ainda”. A grande maioria se divide entre a bandidagem e a estupidez. E, ainda citando Coutinho, é muito difícil a tarefa de decidir qual dos dois é pior. Afinal, podemos acreditar com alguma segurança que livrar o sistema político brasileiro dos bandidos e então entregá-lo aos estúpidos nos transformaria em um país melhor?

Um governo que não apenas se nega a usar a razão, como também a combate sistematicamente, será a solução para nossos males? Nos tornaremos uma potência mundial por sermos “guiados” por pessoas obcecadas em atacar seus “inimigos”, quase todos imaginários, que acabam por se tornar os maiores adversários de seu próprio governo?

Sobre isso, novamente preciso concordar com Coutinho, ao alertar que Cipolla talvez tenha se enganado em suas projeções. Para o historiador italiano, à medida que as sociedades se desenvolvem as pessoas inteligentes acabariam assumindo, progressivamente, o controle das instituições políticas. Com isso, além de a sociedade toda se beneficiar, também os estúpidos seriam controlados, assim como as mazelas coletivas que potencialmente poderiam provocar. Como diz o colunista da Folha:

Pobre Cipolla. Ele esqueceu a primeira lei do seu próprio tratado: nunca subestimar o número de estúpidos, nem mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. Se ele ainda estivesse vivo (morreu no ano 2000), era só olhar ao redor”.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CEGUEIRA SELETIVA

Uma característica profundamente associada ao fanatismo é a cegueira. Cegueira seletiva, no caso. Incapacidade – ou falta de vontade – de perceber em nós mesmos e naqueles que apoiamos as mesmas características e comportamentos criticados e denunciados nos outros.

No Brasil em que vivemos, dividido, movido pelo ódio e pelo fanatismo em sua versão mais tosca, a cegueira seletiva tem se tornado um problema de saúde pública. Obcecados por acusar os adversários de responsáveis por todos os males do mundo, as pessoas não se dão conta das contradições gritantes em que caem diariamente.

Tomemos apenas um exemplo, dos mais recentes. O Presidente do STF, Dias Toffoli, em período de recesso da Corte e atendendo a um pedido “avulso” da defesa do filho número 01 do Presidente da República, suspendeu todas as investigações em andamento iniciadas com base em informações fornecidas pelo COAF sem autorização judicial prévia. Não entro aqui no mérito da decisão, algo que muitos analistas, especialmente do campo jurídico, já fizeram bem. Minha inquietação decorre da total ausência de indignação dos apoiadores do atual governo à decisão.

Façamos um exercício rápido de imaginação. Pensemos que o pedido tivesse sido formulado não pelos advogados de Flávio Bolsonaro, mas pela defesa do ex-presidente Lula, ou de qualquer outro político ligado à esquerda implicado na Lava-Jato. Teríamos mobilizações virtuais e de rua pelo país afora, bonecos do presidente do STF sendo queimados, ameaças de linchamento, fake news espalhadas a todos os ventos. Mas, como o beneficiado direto da decisão foi o filho 01... Nada!

Onde estão os “cidadãos de bem” para fazer passeatas em nome do combate à corrupção e à “velha política”? Onde estão as hordas de devotos de Moro e Dallagnol que não tomam as ruas inflando bonecos e gritando palavras de ordem contra os corruptos e pedindo o fechamento do STF? Onde estão os enxames de intelectuais de direita “empoderados” pelo Face Book para pregar revolta e indignação contra as decisões do STF que beneficiam políticos lambuzados com a lama da corrupção, do abuso de poder, da associação entre política e milícia?

Nem mesmo os adeptos da teoria da conspiração foram capazes de cogitar, por exemplo, a possibilidade de Dias Toffoli ter esperado durante todo esse tempo justamente para beneficiar outros investigados da Lava-Jato, até que um pedido oriundo de alguém da direita bolsonarista aparecesse, a fim de, no atacado, beneficiar todo mundo sem parecer estar ajudando algum político da esquerda. Afinal, se essa decisão fosse tomada em função de um pedido de defensores de um petista, o mundo cairia. Então, tendo esperado um pedido feito por defensores de Flávio Bolsonaro, ele decide de forma geral, beneficiando aqueles que, na verdade, sempre esperou beneficiar. Maluquice? Provavelmente. Mas muito menos insana do que a maioria das teorias que bolsonaristas divulgam todos os dias.

Afinal, somos contra as práticas de corrupção em si, ou apenas contra a corrupção dos “adversários”? Será que, no fundo, todos temos nossos políticos de estimação, contra os quais somos incapazes de direcionar nossas críticas e exigências ético-morais?

Será que essa cegueira seletiva é contagiosa? Tem cura? É uma doença crônica? Vemos a internet cheia de gente corajosa gritando aos quatro ventos que a divulgação jornalística dos diálogos que mostram o submundo da Lava-Jato é criminosa, a despeito do que diz a Constituição Federal sobre a liberdade de imprensa. Onde estavam esses corajosos militantes quando a imprensa divulgou os diálogos entre Dilma (então presidente) e Lula, gravados ilegalmente e divulgados ilegalmente pelo então juiz Sérgio Moro? Onde estavam quando a imprensa divulgou os diálogos gravados ilegalmente por Joeslei Batista, entre ele e o então presidente Michel Temer?

Não, não estou dizendo que essas situações anteriores sejam motivo para criminalizar o trabalho da imprensa. Ao contrário, estou entre os que compreendem e defendem a distinção entre o processo de obtenção das informações (que em todos esses casos foi de forma criminosa) e sua divulgação pela imprensa, assegurada pela Constituição no bojo do princípio democrático de uma imprensa livre, e baseada na noção de interesse público, também presente em todas as situações.

O que frustra é ver a esmagadora maioria da população demonstrar ou incapacidade ou falta de vontade para perceber o que esses episódios têm em comum, o que obrigaria a tratá-los da mesma maneira. Porém, eis que a cegueira seletiva entra em cena, e então nossos filtros deixam de fora do rigor analítico nossos políticos de estimação.

Há muito de verdade no que tantos especialistas têm dito nos últimos tempos: que em uma democracia madura e consolidada as instituições se mostrariam mais sólidas e reagiriam, expurgando aventuras personalistas e messiânicas, seja no campo eleitoral, seja no campo jurídico. Na maioria das democracias pelo mundo afora, Moro e Dallagnol já estariam afastados dos cargos e respondendo por seus desvios de conduta.

Mas tenho a impressão de que se diz pouco sobre o papel da população nessa história. Instituições fortes são imprescindíveis para a sustentação de um regime democrático. Contudo, elas não são suficientes. Não há democracia no mundo que se consolide e que seja capaz de durar sem uma cultura democrática robusta que dê sustentação ao regime e às suas instituições. Embora nossas instituições democráticas sejam, de fato, frágeis, esse está longe de ser o único problema de nossa democracia. Nossa cultura democrática é ainda mais precária.

O Brasil não terá uma democracia forte enquanto seus eleitores agirem como hordas de animais guiados pelo fígado, que acreditam que o país só será melhor quando os adversários políticos forem todos linchados e destruídos. A única coisa que esse comportamento é capaz de alimentar são as sementes do autoritarismo, essa coisa horrorosa de que tantos acusam a Venezuela, mas que são incapazes de perceber no próprio quintal.