segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O "CENTRÃO" É UMA FARSA

Virtus in medium est. A afirmação, famosa na ciência política, é de Aristóteles. “A virtude está no meio”, dizia o filósofo grego. No contexto de sua filosofia (neste caso, especialmente sua teoria da ética), a frase indica a importância que Aristóteles dava à temperança, ao equilíbrio, à capacidade de manter-se longe dos extremos, que ele considerava vícios. É no “meio” que se encontra a sabedoria, a virtude.

Entre morrer de fome por comer pouco ou de obesidade por comer demais, é sábio (ou “ético”, nos termos aristotélicos) alimentar-se na medida certa. Entre ser um covarde e não conseguir nenhum feito na vida e ser corajoso em excesso, flertando com a temeridade pela qual pode-se acabar morto, a coragem está em manter-se equilibrado, em avaliar cada situação e agir de acordo com a razão e a lógica, controlando, racionalmente, o medo. Entre não ter amigos e amargar uma vida solitária e ter tantos ao ponto de não poder dedicar-se a nenhum deles adequadamente, a sabedoria está em ter poucos e verdadeiros amigos, com os quais se pode contar sempre.

O “meio”, portanto, nos termos de Aristóteles, é uma posição racional, estratégica, pautada pelo equilíbrio entre extremos. Em nada se assemelha ao oportunismo que geralmente caracteriza o “meio” na política brasileira, mais conhecido como “centro”. É justamente o oposto de ficar “em cima do muro” para poder se inclinar para o lado onde as oportunidades parecem mais vantajosas, ao velho estilo (P)MDB de “não precisar governar para estar sempre no governo”.

Na teoria política, de Aristóteles até nossos dias, o “centro” é tido como uma posição intermediária, com convicções e ideias que se colocam “entre” os extremos. Entre o radicalismo neoliberal da extrema direita e o comunismo revolucionário da extrema esquerda, o centro representaria uma tentativa de equilíbrio, marcado por visões de mundo e programas de governo que tentam combinar liberdades econômicas com programas sociais e certa musculatura estatal. Quando essa posição intermediária se inclina um pouco mais na direção dos preceitos neoliberais, então temos posições (e partidos) de centro-direita. Quando a inclinação aponta para o lado oposto, temos posições (e partidos) de centro-esquerda.

Bem, isso no campo teórico. E em casos de democracias mais consolidas, com partidos mais enraizados socialmente, como em países – não todos – europeus.

No caso brasileiro, a coisa é bem diferente. Por aqui já é difícil falar em esquerda e direita, dada a confusão de visões de mundo e “bandeiras” defendidas por partidos que se colocam em um ou outro lado do espectro ideológico, como o caso da direita que se diz “liberal na economia, conservadora nos costumes”, sem se preocupar com a completa falta de sentido do slogan. Imagine, então, como é difícil falarmos em “centro”.

Para piorar um pouco as coisas, partidos que, em termos estatutários, seriam defensores de posições de “centro”, na prática se afastam deliberadamente dessa posição. É o caso do PSDB. Em termos de preceitos ideológicos, a socialdemocracia, movimento surgido na Europa e politicamente muito importante no velho continente, é de centro (de centro-esquerda, para ser preciso). Mas por aqui, representada pelo PSDB, tornou-se símbolo de políticas neoliberais e sigla partidária concentradora de lideranças típicas da direita.

O “centro”, então, no caso brasileiro, passou a ser associado não a uma posição política minimamente delimitada e identificável, mas a um movimento pautado pelo pragmatismo de interesses oportunistas cuja marca fundamental é exatamente a completa ausência de qualquer princípio ideológico.

Na sua esmagadora maioria, os políticos do chamado “centrão” são, na verdade, vinculados a partidos ideologicamente de direita (considerando-se os preceitos estatutários), como é caso típico do PP.

Contudo, não é o partido o elemento definidor do pertencimento ao “centrão”, embora siglas como MDB e DEM, além do PP, abriguem a maior parte de seus representantes. Esse é um movimento muito mais ligado a estratégias pessoais dos agentes políticos, especialmente parlamentares. Por isso geralmente não se fala em “partidos do centrão”, mas em “políticos do centrão”.

O termo remete a um grupo de políticos que atuam com base no fisiologismo, apoiando qualquer governo disposto a lhes proporcionar benesses do Estado: cargos para seus apadrinhados políticos, emendas orçamentárias para seus redutos eleitorais, políticas que favoreçam seus financiadores ou segmentos específicos de eleitores que os apoiam.

O “centrão” não tem ideologia, não defende bandeira política, não tem ideias e projetos sobre temas específicos da gestão pública. Não segue princípios políticos ou éticos, nem defende visões de mundo minimamente coerentes. É um movimento orientado por interesses político-eleitorais imediatos, fisiológico, comprometido com seus próprios projetos pessoais de poder.

Por isso, não tem qualquer pudor em defender e apoiar o governo de plantão, seja ele de esquerda, de direita, autoritário, incompetente, lunático. Se o presidente do momento estiver disposto a distribuir cargos, verbas e algum “prestígio” aos seus integrantes, ele terá o apoio maciço do “centrão”. Apoio que pode ser para aprovar leis e projetos desastrosos para o país ou para livrá-lo de eventual processo de impeachment. O mérito das causas não tem qualquer importância. O que conta é a recompensa disponível. E se ela for atraente, o “centrão” estará sempre disposto a dar sustentação aos projetos do executivo, por mais nefastos e autoritários que possam ser.

O “centrão” é, portanto, uma das maiores ameaças ao nosso regime democrático. E seria muito importante que a mídia e todos nós parássemos de (re)tratá-lo com ironia e chacota e reconhecêssemos em sua atuação o que há de pior em nossa democracia.

O “centrão” precisa ser levado a sério não por causa suas ideias, porque não as tem. O “centrão” precisa ser levado a sério porque não vê problema nenhum em ser o fator decisivo para a concretização de qualquer projeto antidemocrático, desde que vislumbre alguma vantagem. Isso o torna tão perigoso quando o governo disposto a comprá-lo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

BOLSONARO E O “CENTRÃO”

Em outubro de 2019 publiquei, neste blog, texto com o título: “o bolsonarismo contra o bolsonarismo” (https://ivannlago.blogspot.com/2019/10/o-boolsonarismo-contra-o-bolsonarismo.html). Nele tentei mostrar como a natureza do governo Bolsonaro e de suas bases sociais de apoio tende a um processo de diminuição contínua e progressiva de sua sustentação política. Obcecado por produzir inimigos e combatê-los como método político, é inevitável que o governo passe a vê-los nos círculos cada vez mais próximos.

Aos poucos os inimigos deixam de ser “apenas” os comunistas, e começam a frequentar os círculos do próprio governo. Surgem traidores em toda parte. Afinal, se o comunismo dominou a ONU, a mídia nacional e internacional, as ONG’s, as universidades e até o Banco Mundial, seria muito difícil impedir que se “infiltrasse” no governo e no próprio bolsonarismo (Moro e Mandetta sabem do que estamos falando...).

Ate aí, nenhuma novidade. Esse comportamento é típico de governos autoritários e obcecados pela guerra ideológica. O bolsonarismo não inventou o método, embora possa estar caminhando para se tornar sua vítima. Explico.

Bolsonaro levou seu próprio governo a uma encruzilhada. Entre os caminhos possíveis, aquele que o Presidente parece ter escolhido pode levá-lo ao choque direto com sua base de sustentação ideológica. Bolsonaro está, pois, em rota de colisão com o bolsonarismo. Vamos aos fatos.

Um Bolsonaro “paz e amor” tem surpreendido a (quase) todos nas últimas semanas. A mídia, a oposição e setores do próprio governo estão espantados com a moderação do presidente desde que sua prioridade passou a ser o apoio do “centrão”. Diz-se que isso é uma estratégia para aprovar as reformas do Posto Ipiranga, digo, Paulo Guedes. O medo do impeachment, que se tornou pavor depois do aparecimento do Queiroz, claro, é só uma coincidência.

O discurso antissistema de Bolsonaro durante a campanha “colou” tão bem que sua aproximação com o “centrão” parece algo estranho, uma guinada radical em seu governo. Ora, é tudo menos isso.

Lembremos que Bolsonaro frequentou o parlamento brasileiro, como deputado, por 28 anos. Nesse período, passou por mais de meia dúzia de partidos. Mas a sigla onde permaneceu mais tempo foi o PP, partido que há muito tempo é – vejam só! – o símbolo do “centrão”.

Sim, Bolsonaro sempre foi, ele próprio, deputado do “centrão”. Do baixíssimo clero, é verdade, mas do “centrão”. Apoiou, por exemplo, a histórica e icônica eleição de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara dos Deputados. Adotou o pragmatismo acima de qualquer ideologia, votando com a esquerda e com a direita conforme os interesses e o oportunismo do momento demandavam.

Durante sete mandatos parlamentares, Bolsonaro nunca levantou a bandeira de combate à corrupção. Ao contrário, o que as investigações hoje apontam é que a tinha como um hábito de família. O discurso anticorrupção e antissistema só foi adotado na campanha presidencial porque se apresentou como o “calcanhar de Aquiles” da esquerda, especialmente do PT. Foi uma leitura de cenário, uma oportunidade que Bolsonaro soube explorar, e que ajudou a catapultá-lo dos porões do Congresso ao Palácio do Planalto.

Mas, “cidadãos de bem” acreditaram que ele era a encarnação do Jesus Cristo, o mais santo e puro dos homens, enviado por Deus para salvar o Brasil. Bem, boa parte desses “cidadãos de bem” também acredita que a terra é plana, que  Rodrigo Maia é comunista e que Olavo de Carvalho é filósofo. Mas isso já é tema para uma coluna de psiquiatria...

Não, Bolsonaro não está deixando de ser quem é para se aproximar do “centrão”. Bolsonaro sempre foi do “centrão”. Bolsonaro é o símbolo do “centrão”. O que ele está fazendo é voltar às origens, revisitando as catacumbas de Brasília onde passou quase metade de sua vida e onde estão seus velhos e verdadeiros amigos da política.

O dilema que o presidente enfrenta, ao fazer esse movimento, é que ele se apresenta como contraditório, seja para seus apoiadores mais ideológicos, seja para os bolsonaristas anti-PT que acreditaram no discurso de campanha, ou mesmo para a mídia ingênua que, influenciada pelo presidente bufão dos últimos 18 meses, esqueceu do deputado insignificante de sete mandatos.

Mas o grande perigo que Bolsonaro corre não vem da surpresa ingênua da mídia, nem da paralisia causada pela frustração da ala mais desinformada de seus eleitores. O perigo vem das hostes de sustentação ideológica de seu governo. O perigo vem do bolsonarismo ideológico. Autoritário e violento, o bolsonarismo ideológico fez da bandeira antissistema uma seita, e em nome dela está disposto a tudo, inclusive voltar-se contra Bolsonaro.

A criatura adquiriu vida própria. O mostro cresceu e ameaça devorar seu criador. O bolsonarismo começa a voltar-se contra Bolsonaro. E a ameaça cresce à medida que o presidente se aproxima do “centrão”, o que é visto como fraqueza, como um ato de rendição ao inimigo, portanto, como um indício de que o “mito” não tem mais a força necessária para combater o sistema. Ou pior, que estaria sendo seduzido por ele.

Não nos surpreendamos se, em 2022, o bolsonarismo ocupar o espaço da ultra direita deixado pela versão “paz e amor” de Bolsonaro, lançando candidato próprio, com discurso ideológico e atacando o antigo ídolo.

Bolsonaro está em aberta campanha para a reeleição. E para consegui-la sabe que precisa do voto dos pobres, o que demanda políticas que são contrárias a tudo o que sua base ideológica espera que ele faça. O governo precisa gastar dinheiro que não tem, e para isso precisa de autorização do Congresso. Bolsonaro precisa de seus velhos amigos do “centrão”.

Mas, principalmente, para se reeleger em 2022, Bolsonaro precisa continuar presidente até lá, ou seja, precisa sobreviver às ameaças de impeachment. E aí está o grande motivo do retorno ao velho habitat – os porões do Congresso Nacional.

O bolsonarismo ideológico é numericamente insuficiente para reeleger Bolsonaro. A dúvida é se o estrago que pode causar ao voltar-se contra o criador é suficiente para por em xeque os planos do “mito” de um segundo mandato.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

LIÇÕES DE UMA PANDEMIA


Em parceria com Anderson Ribeiro, a quem credito a ideia geral do texto e também a maior parte de seu conteúdo.

Em 1919, em edição do dia 30 de maio, a Revista Science publicava um artigo com o título “As lições da Pandemia”, escrito por G. A. Soper. O autor destaca, tratando da “Gripe Espanhola”, que o mais marcante daquela epidemia, que devastou o mundo entre 1918 e 1919, matando mais de 50 milhões de pessoas, era o grande desconhecimento sobre a doença, sobre sua origem e sobre como pará-la.

No artigo de 1919, Soper elencava ainda os fatores que atrapalhavam a prevenção:

1 A indiferença do público: principalmente pela confusão com outras infecções respiratórias de menor potencial, como o resfriado comum.
2 - O caráter individual das medidas que precisavam ser tomadas: não está no comportamento padrão das pessoas se isolar como medida de proteção ao outro, especialmente quando o indivíduo acredita que só tem um simples resfriado, com pouca ou nenhuma chance de virar uma infecção grave.
3 - A natureza altamente infecciosa das doenças respiratórias: com variados tempos de incubação, com as pessoas podendo transmitir a doença antes mesmo de perceber ou apresentarem sintomas.

Um século depois estamos nós, novamente, enfrentando uma epidemia de proporções globais, uma pandemia. Com potencial muito mais devastador do que H1N1, SARS, MERS, e mesmo HIV, a pandemia da COVID-19 é, certamente, é maior dos últimos 100 anos.

Estamos em situação muito diferente daquela experimentada em 1919 em termos de conhecimento: sabemos o que é a doença, conhecemos minimamente seus mecanismos de transmissão e a forma como age nos organismos infectados. Muitos esforços mundiais estão sendo feitos para pará-la. E embora ainda não tenhamos descoberto um tratamento eficaz, sabemos que o isolamento social é uma estratégia bastante eficiente de controle da propagação, o que é fundamental para assegurar atendimento médico-hospitalar para os casos graves da doença.

Ao longo do século XX o desenvolvimento das pesquisas científicas permitiu conhecer os mecanismos de transmissão, identificar os patógenos, desenvolver vacinas e/ou medicamentos capazes de controlar os efeitos, criar modelos preditivos do comportamento do contágio e muito mais, prevenindo ou atenuando os impactos de uma ampla gama de doenças. Com exceção do HIV, todas as demais epidemias tiveram efeitos muito menores do que os da Gripe Espanhola, por exemplo.

Mesmo assim, estamos vendo uma epidemia sacudir o mundo, expor muitas características e fragilidades dos nossos sistemas político e social que ficam soterradas no cotidiano, na nossa rotina que não proporciona momentos de parada, de reflexão, e que agora se escancaram. Se as pesquisas no campo da medicina aumentaram muito nossa capacidade de lidar com a dimensão biológica das doenças, nossa compreensão de suas conexões com o mundo social, econômico, político e cultural ainda são as mesmas de 1919, ou até piores.

A má distribuição de renda e a falta de acesso a condições dignas de vida entram em evidência em momentos como esse. A falta de segurança social, a precariedade do emprego e do trabalho informal, as relações de trabalho desequilibradas, são fatores que se escancaram como nunca. Os problemas de moradia, precária ou inexistente para grande parte da população, de falta de saneamento básico e de políticas preventivas de saúde ganham destaque, pois expõem a situação que, para a grande maioria, se tornou o “normal”. Nossos centros avançados de medicina de ponta fazem transplantes de coração, de mãos e de medula, mas a maior parte da população padece de doenças decorrentes da falta de saneamento, de água potável, de alimentação básica.

A concentração de pessoas em favelas e nas periferias das grandes cidades é fator que preocupa médicos, epidemiologistas, cientistas em geral e autoridades públicas sérias. A escandalosa falta de saneamento básico nesses locais aumenta exponencialmente os fatores de risco. A necessária medida de distanciamento, que obriga muitas pessoas a ficarem em suas casas, gera impactos significativos para os que trabalham na informalidade e que dependem da atuação diária para o seu ganha-pão e não têm nenhum tipo de seguridade social ou plano de previdência, dado que as condições de exploração a que são submetidas fazem com que mal ganhem para a comida do dia. Para muita gente em nosso país, não trabalhar de dia significa não comer de noite.

Salta aos olhos o despreparo dos órgãos governamentais, especialmente quando atravessamos um período onde a ordem do dia são os cortes no orçamento público e o encolhimento do Estado em nome da fé no mito do mercado como solução para tudo. Hipnotizado pelo mantra do ultraliberalismo, nosso governo central paralisa sem rumo, e a única coisa que consegue fazer bem é lamentar que as reformas em tramitação precisarão esperar. O stress dos especuladores, que estão perdendo dinheiro na bolsa de valores, é visível no semblante dos responsáveis pela economia nacional. O desespero dos doentes e dos pobres que morrem tanto pelo vírus quanto pela fome, não.

Fica claro também que existe uma rede interligada de ações públicas que permitem o desenvolvimento da iniciativa privada, dando-lhe estrutura e sustentação. Sem educação pública, mães e pais não têm onde deixar seus filhos, muito menos condições de lhes dar uma educação de qualidade por meio de home schooling. Sem serviço público de saúde, o atendimento aos trabalhadores em geral seria precário ou inexistente, submetendo a maioria da população a condições ainda piores de vida, o que traria impacto para a força de trabalho que é demandada para alavancar a economia nacional.

Curiosamente esses serviços básicos, como educação pública e amparo social aos mais vulneráveis, têm sido fortemente atacados e desmantelados nos últimos anos no Brasil, em nome de uma concepção ultraliberal de sociedade onde o Estado deve ser estrategicamente ausente e a iniciativa privada resolveria todos os problemas do mundo. Isso, claro, se todos os problemas do mundo forem os seus problemas.

Ironicamente, a pandemia que enfrentamos tem mostrado a importância de sistemas públicos de saúde e de educação, de investimento em pesquisa e desenvolvimento científico, ao tempo em que evidencia o preço que se paga quando essas questões são negligenciadas e sucateadas. O sistema único de saúde (SUS) permite uma rápida coordenação de esforços em todos os estados e municípios do país, dado que já tem estrutura e organização, possibilitando uma ação eficiente frente aos efeitos da pandemia. Também permite a coordenação de medidas preventivas que são, no atual momento, a melhor medida que temos para mitigar o contágio.

Ao mesmo tempo, o investimento em ciência e desenvolvimento científico e tecnológico, em todas as áreas do conhecimento, se mostra não só necessário, mas absolutamente indispensável. A dependência de tecnologia importada, de conhecimento produzido em outros lugares, de insumos para pesquisa e mesmo de produção local de derivados dessas pesquisas, pode ser a maior fragilidade do país em um momento de crise sanitária. Felizmente ainda temos um sistema de pesquisa e produção de conhecimento funcionando, embora a duras penas e graças à determinação dos pesquisadores, muitas vezes com sacrifícios pessoais, nas universidades públicas e nos institutos de pesquisa. A rede de pesquisa nacional mostra toda sua capacidade e competência ao responder agilmente às demandas e apresentar soluções inovadoras e inteligentes, ao mesmo tempo em que mostra os problemas decorrentes do descaso e do sucateamento enfrentado nos últimos anos.

Soper diz que a grande lição da pandemia de 1919 foi chamar a atenção para a prevalência de doenças respiratórias em tempos comuns, à indiferença com que são comumente consideradas e à incapacidade, na época, de proteção em relação a elas. Que, depois de sobreviver à COVID-19, tenhamos aprendido lições importantes que possam nos ajudar a repensarmos nosso modelo de sociedade.

Que aprendamos que os efeitos de uma pandemia vão muito além dos sintomas causados pelo vírus na saúde das pessoas que ele infecta. Eles afetam todas as dimensões da vida, desde a economia e a política até as relações cotidianas mais básicas. E seus maiores estragos, invariavelmente, se dão entre os mais pobres.

Que aprendamos que quando estamos no meio de uma pandemia não adianta cobrar dos cientistas que apresentem curas e vacinas, se em tempos “normais” os tratamos como inimigos e lhes retiramos as condições mínimas para pesquisar. Que não esqueçamos que se o impacto da pandemia está sendo minimizado em nosso país, é graças ao SUS, é graças ao sistema público e aos servidores públicos que nele trabalham, e que por todo o país hospitais privados e planos de saúde têm sido denunciados por negar atendimento às pessoas.

Muito tem se dito que após a pandemia nada vai voltar ao que era antes, ao “normal”. Que assim seja, pois como também tem se repetido muito nos últimos dias, foi o normal que nos levou a situação em que estamos.


Se não pensarmos, enquanto sociedade, em mecanismos de combate do que se tornou o “normal” e repararmos injustiças sociais históricas, estaremos fadados, no futuro, como disse Cazuza, a repetir o passado.


terça-feira, 31 de março de 2020

ESPERAR E ESCREVER EM TEMPOS DE PANDEMIA


Nos últimos dias muitos amigos têm “cobrado” artigos para o blog. Afinal, em tempos de quarentena, não faltariam nem tempo nem assunto para escrever. Eles têm razão. De fato, tempo e assunto não faltam. Mas, tempo e assunto seriam suficientes para escrever?

O problema, no meu caso, é que fico em dúvida se realmente tenho algo útil a escrever nesse momento, ou se deveria “aprender” mais sobre ele antes de dizer qualquer coisa. Só porque o mundo inteiro não fala de outro assunto não significa que eu também tenha que falar. Até porque o mundo inteiro fala tanta bobagem, tanta coisa sem pé nem cabeça, que dá um trabalho danado processar tudo e tentar refletir minimamente.

O que estamos passando não é algo simples. Sim, a pandemia vai passar. Mas o mundo não vai voltar ao normal. Afinal, o “normal” é justamente a raiz de tudo o que estamos passando.

A quarentena deveria servir para fazermos algo para o qual não temos tempo durante a correria da vida diária, “normal”: pensar. Vejo gente que passa o dia enchendo o saco dos outros nas redes sociais, repetindo centenas de vezes para que “fiquem em casa”, que tenham com os velhinhos e com os profissionais da saúde a empatia que eles próprios não têm com os miseráveis que estão passando fome e para quem os planos de auxílio do governo são apenas notícias na televisão. Vejo outros montando e reproduzindo vídeos, fotos e piadinhas sem graça sobre o coronavírus e sobre como “lidar” com ele e com a quarentena que ele nos impôs, numa tentativa desesperada de negar a seriedade do que está acontecendo.

Vejo gente disputando para ver quem é mais criativo nos dias de confinamento, ou quem é mais inteligente nas brincadeiras que inventam para distrair os filhos, cuja presença em casa parece ser motivo de pavor maior do que o vírus. Vejo outros fazendo poses ao lado de livros em tentativas cômicas de mostrar que sua quarentena é intelectualizada. Vejo outros ainda postando frases de efeito sobre como o confinamento lhes proporcionou oportunidade de pensar sobre si mesmos e sobre suas prioridades, como se o fato de nunca terem sido capazes de fazer isso antes fosse motivo de orgulho. Será mesmo que alguém que precisou de uma pandemia e de confinamento para pensar na própria vida é alguém que tem algo útil a dizer aos outros neste momento?

Vejo gente supostamente esclarecida embarcando em teorias da conspiração estapafúrdias, reproduzindo fake news e ajudando a assustar e confundir as pessoas quando informação e conhecimento científico são os melhores instrumentos que temos.

Vejo bate-bocas estúpidos sobre qual partido ou grupo político está se comportando melhor diante da pandemia, sustentados com argumentos que envergonhariam um estudante do jardim de infância.

Esses comportamentos são, no fundo, estratégias de fuga, tentativas de distração para afastar do pensamento que assusta: o mundo não voltará ao “normal”. Não, nós não vamos ficar dois ou três meses trancados em casa para depois retomarmos nossas vidas como se nada tivesse acontecido. Não vamos trabalhar mais intensamente durante um tempo para repor aulas e tarefas atrasadas e depois tirarmos férias e esquecer tudo o que passou. No fundo, todos sabemos disso, e é isso que nos angustia.

É claro que isso não é, necessariamente, ruim. A implosão das bases de nosso estilo de vida pode trazer algo bom, pode ser o início de um novo modelo de sociedade e de organização da vida. Mas isso não muda o fato de que o mundo será diferente quando isso passar, e toda mudança gera angústia e medo.

Por isso, um exercício interessante é tentar imaginar como será o mundo depois da pandemia. E aqui talvez haja espaço para um pouco de otimismo, mesmo que ele se aproxime, perigosamente, da ingenuidade.

De minha parte, espero que depois de tudo isso a valorização da ciência esteja realmente entre as principais lições que aprendemos. Uma valorização que passa pelo entendimento do que é a ciência, de como ela funciona e de quais são seus métodos para produzir e socializar conhecimento. Teremos realmente aprendido algo se passarmos a organizar nossa vida e nosso pensamento com um pouco mais de ciência e de método científico. Se as “bases científicas” não forem apenas justificativa para os jornalistas de todo canto pedirem para ficarmos em casa, mas se tornarem de fato parâmetro de organização de nossas vidas e da nova sociedade que precisaremos construir.

Espero que os “fodões” das redes sociais, que agora cobram dos cientistas e das universidades soluções para a pandemia e uma vacina para o vírus, não se transformem, em alguns meses, nos sabichões defensores de cortes no orçamento da educação, da ciência e da pesquisa. Talvez o vírus que causará a próxima pandemia mundial seja hoje carregado por algum pequeno roedor endêmico das barrancas do Rio Uruguai. Então, quando algum professor universitário desenvolver um projeto de pesquisa para mapear pequenos roedores da região e investigar os patógenos que eles carregam, que esses “fodões” do FaceBook não levantem a voz para vomitar comentários imbecis sobre como os professores da universidade estão “desconectados da realidade” pesquisando “coisas sem serventia para a população” com o “dinheiro do povo que paga impostos”. E, se isso acontecer, que tenhamos coragem e decência para mandar que se cale, e defendamos a ciência contra o achismo e a ignorância, mesmo que eles estejam ao nosso lado, na nossa família.

Espero que os governos entendam que milhões de dólares pesquisando vida silvestre, por exemplo, para mapear outros vírus e seus potenciais riscos para a humanidade, são uma pechincha perto dos trilhões gastos para tentar amenizar os estragos econômicos e do incalculável custo das vidas perdidas por uma pandemia global. E que aceitem, de uma vez por todas, que o mundo seria, sim, um lugar melhor, se gastássemos em pesquisa para salvar vidas metade do dinheiro que gastamos em armas para destruí-las.

Que sejamos capazes de reconhecer não apenas a importância das ciências médicas para a pesquisa de doenças e de suas curas, mas o potencial das ciências humanas para compreender os impactos sociais de abalos econômicos, de crises humanitárias, de charlatanismo político. Que entendamos que os estragos de um modelo econômico socialmente injusto e de um governo fascista podem ser tão grandes quanto os de uma pandemia, e reconheçamos, assim, que a história e a ciência política nos são tão importantes quanto a medicina.

Espero que a sociedade entenda que o conhecimento cientifico nem sempre tem uma “aplicação” imediata, porque o que move o verdadeiro cientista não é a vontade política de resolver esse ou aquele problema, mas o desejo de compreender o mundo à sua volta e tudo o que existe nele. Se esse conhecimento será transformado em tecnologias, em objetos, em máquinas, em vacinas, em remédios, em venenos ou em armas, cabe à sociedade decidir depois.

Se todos tivéssemos tido aulas de economia e ciência política na escola, entenderíamos as relações entre os modelos econômicos dos diversos países e sua estrutura de atuação diante da pandemia. Entenderíamos porque o Brasil não consegue implantar uma política de ajuda econômica aos mais vulneráveis. Entenderíamos porque os EUA serão provavelmente a nação com mais mortes pela COVID-19, mesmo sendo o país mais rico do mundo. Entenderíamos porque nosso presidente nega a ciência e qualquer resquício de racionalidade em seus discursos e ações e ainda assim mantêm um terço dos brasileiros fieis a ele. Entenderíamos porque nosso ministro da economia paralisou com a chegada da pandemia, incapaz de pensar qualquer política pública para além de privatizações e sucateamento da estrutura do Estado. Saberíamos a diferença entre liberalismo e neoliberalismo. Saberíamos quem foi Keynes e porque estão falando dele novamente como modelo de ação do Estado. E então talvez nossas postagens em redes sociais não fossem tão toscas.

Espero que as pessoas valorizem o conhecimento científico em todos os seus níveis, desde as lições de biologia do ensino fundamental até a pesquisa de ponta, pois assim talvez nos tornemos menos propensos a acreditar em fake news, em líderes imbecis, em babaquices de redes sociais, em argumentos toscos, em negacionistas e curandeiros políticos.

Talvez depois da pandemia não esqueceremos tão rapidamente da importância da ciência, e pararemos de achar graça em defensores do terraplanismo. Talvez até sejamos capazes de perceber que o terraplanismo, o culto à violência, o fascismo, e negacionismo, o ultraliberalismo, o machismo, o anti-intelectualismo e tantos outros “ismos” estão todos interligados e precisam ser combatidos, todos, em suas estruturas fundamentais.

Espero, enfim, que tenhamos de fato um mundo melhor depois que tudo isso passar. E que o vírus não tire de muitos de nós a possibilidade de conhecê-lo.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O JAIR QUE HÁ EM NÓS


O Brasil levará décadas para compreender o que aconteceu naquele nebuloso ano de 2018, quando seus eleitores escolheram, para presidir o país, Jair Bolsonaro. Ex-integrante do Exército onde respondeu processo administrativo sob acusação de organização de ato terrorista; deputado de sete mandatos conhecido não pelos dois projetos de lei que conseguiu aprovar em 28 anos, mas pelas maquinações do submundo que incluem denúncias de “rachadinha”, contratação de parentes e envolvimento com milícias; ganhador do troféu de campeão nacional da escatologia, da falta de educação e das ofensas de todos os matizes de preconceito que se pode listar.

Embora seu discurso seja de negação da “velha política”, Bolsonaro, na verdade, representa não sua negação, mas o que há de pior nela. Ele é a materialização do lado mais nefasto, mais autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro. Mas – e esse é o ponto que quero discutir hoje – ele está longe de ser algo surgido do nada ou brotado do chão pisoteado pela negação da política, alimentada nos anos que antecederam as eleições.

Pelo contrário, como pesquisador das relações entre cultura e comportamento político, estou cada vez mais convencido de que Bolsonaro é uma expressão bastante fiel do brasileiro médio, um retrato do modo de pensar o mundo, a sociedade e a política que caracteriza o típico cidadão do nosso país.

Quando me refiro ao “brasileiro médio”, obviamente não estou tratando da imagem romantizada pela mídia e pelo imaginário popular, do brasileiro receptivo, criativo, solidário, divertido e “malandro”. Refiro-me à sua versão mais obscura e, infelizmente, mais realista segundo o que minhas pesquisas e minha experiência têm demonstrado.

No “mundo real” o brasileiro é preconceituoso, violento, analfabeto (nas letras, na política, na ciência... em quase tudo). É racista, machista, autoritário, interesseiro, moralista, cínico, fofoqueiro, desonesto.

Os avanços civilizatórios que o mundo viveu, especialmente a partir da segunda metade do século XX, inevitavelmente chegaram ao país. Se materializaram em legislações, em políticas públicas (de inclusão, de combate ao racismo e ao machismo, de criminalização do preconceito), em diretrizes educacionais para escolas e universidades. Mas, quando se trata de valores arraigados, é preciso muito mais para mudar padrões culturais de comportamento.

O machismo foi tornado crime, o que lhe reduz as manifestações públicas e abertas. Mas ele sobrevive no imaginário da população, no cotidiano da vida privada, nas relações afetivas e nos ambientes de trabalho, nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas piadas diárias, nos comentários entre os amigos “de confiança”, nos pequenos grupos onde há certa garantia de que ninguém irá denunciá-lo.

O mesmo ocorre com o racismo, com o preconceito em relação aos pobres, aos nordestinos, aos homossexuais. Proibido de se manifestar, ele sobrevive internalizado, reprimido não por convicção decorrente de mudança cultural, mas por medo do flagrante que pode levar a punição. É por isso que o politicamente correto, por aqui, nunca foi expressão de conscientização, mas algo mal visto por “tolher a naturalidade do cotidiano”.

Se houve avanços – e eles são, sim, reais – nas relações de gênero, na inclusão de negros e homossexuais, foi menos por superação cultural do preconceito do que pela pressão exercida pelos instrumentos jurídicos e policiais.

Mas, como sempre ocorre quando um sentimento humano é reprimido, ele é armazenado de algum modo. Ele se acumula, infla e, um dia, encontrará um modo de extravasar. Como aquele desejo do menino piromaníaco que era obcecado pelo fogo e pela ideia de queimar tudo a sua volta, reprimido pelo controle dos pais e da sociedade. Reprimido por anos, um dia ele se manifesta num projeto profissional que faz do homem adulto um bombeiro, permitindo-lhe estar perto do fogo de uma forma socialmente aceitável.

Foi algo parecido que aconteceu com o “brasileiro médio”, com todos os seus preconceitos reprimidos e, a duras penas, escondidos, que viu em um candidato a Presidência da República essa possibilidade de extravasamento. Eis que ele tinha a possibilidade de escolher, como seu representante e líder máximo do país, alguém que podia ser e dizer tudo o que ele também pensa, mas que não pode expressar por ser um “cidadão comum”.

Agora esse “cidadão comum” tem voz. Ele de fato se sente representado pelo Presidente que ofende as mulheres, os homossexuais, os índios, os nordestinos. Ele tem a sensação de estar pessoalmente no poder quando vê o líder máximo da nação usar palavreado vulgar, frases mal formuladas, palavrões e ofensas para atacar quem pensa diferente. Ele se sente importante quando seu “mito” enaltece a ignorância, a falta de conhecimento, o senso comum e a violência verbal para difamar os cientistas, os professores, os artistas, os intelectuais, pois eles representam uma forma de ver o mundo que sua própria ignorância não permite compreender.

Esse cidadão se vê empoderado quando as lideranças políticas que ele elegeu negam os problemas ambientais, pois eles são anunciados por cientistas que ele próprio vê como inúteis e contrários às suas crenças religiosas. Sente um prazer profundo quando seu governante maior faz acusações moralistas contra desafetos, e quando prega a morte de “bandidos” e a destruição de todos os opositores.

Ao assistir o show de horrores diário produzido pelo “mito”, esse cidadão não é tocado pela aversão, pela vergonha alheia ou pela rejeição do que vê. Ao contrário, ele sente aflorar em si mesmo o Jair que vive dentro de cada um, que fala exatamente aquilo que ele próprio gostaria de dizer, que extravasa sua versão reprimida e escondida no submundo do seu eu mais profundo e mais verdadeiro.

O “brasileiro médio” não entende patavinas do sistema democrático e de como ele funciona, da independência e autonomia entre os poderes, da necessidade de isonomia do judiciário, da importância dos partidos políticos e do debate de ideias e projetos que é responsabilidade do Congresso Nacional. É essa ignorância política que lhe faz ter orgasmos quando o Presidente incentiva ataques ao Parlamento e ao STF, instâncias vistas pelo “cidadão comum” como lentas, burocráticas, corrompidas e desnecessárias. Destruí-las, portanto, em sua visão, não é ameaçar todo o sistema democrático, mas condição necessária para fazê-lo funcionar.

Esse brasileiro não vai pra rua para defender um governante lunático e medíocre; ele vai gritar para que sua própria mediocridade seja reconhecida e valorizada, e para sentir-se acolhido por outros lunáticos e medíocres que formam um exército de fantoches cuja força dá sustentação ao governo que o representa.

O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.

Poucas vezes na nossa história o povo brasileiro esteve tão bem representado por seus governantes. Por isso não basta perguntar como é possível que um Presidente da República consiga ser tão indigno do cargo e ainda assim manter o apoio incondicional de um terço da população. A questão a ser respondida é como milhões de brasileiros mantêm vivos padrões tão altos de mediocridade, intolerância, preconceito e falta de senso crítico ao ponto de sentirem-se representados por tal governo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

PARASITAS?


Hannah Arendt está entre os pensadores que mais profundamente compreenderam as atrocidades cometidas pelos regimes totalitários do século XX, especialmente em sua dimensão cotidiana. Uma de suas preocupações centrais era entender como pessoas comuns foram capazes de cometer algumas das maiores insanidades que o mundo já viu e integrar essas práticas normalmente à banalidade do cotidiano.

Arendt se perguntava, por exemplo, como era possível a um oficial do exército alemão receber amigos em casa para o jantar, conversar sobre futebol, ler Goethe antes de dormir, abraçar seus filhos e rir em família durante o café da manhã, e então se dirigir a um campo de concentração e passar o dia a assassinar judeus e ciganos.

Suas respostas a essa e outras indagações do mesmo gênero são, claro, filosoficamente complexas, e não é objetivo dissecá-las aqui. Mas um aspecto interessa à argumentação que pretendo apresentar a seguir. Um argumento central em suas análises, retomado por muitos pensadores que seguiram e seguem sua trilha filosófica para compreender nossos tempos, é o de que uma característica importante da sociedade contemporânea é que ela abriu mão do pensamento.

Abdicamos de pensar. Contra tudo o que nos ensinaram pensadores, filósofos e cientistas por 25 séculos, nos tornamos uma sociedade que não quer e não sabe pensar.

É verdade que temos opinião sobre tudo. Nos posicionamos sobre qualquer coisa que esteja em pauta. Gritamos pelo direito de nos expressar e dizer o que “achamos”, não importa do que se trate. Todos têm o direito e as ferramentas para se expressar, para manifestar “sua” opinião. E ficamos tão preocupados em fazê-lo que deixamos de refletir sobre como essas opiniões são definidas.

Os resultados são catastróficos. Uma multidão de sujeitos empoderados e ávidos por expressar suas opiniões sobre tudo, mas incapazes de desenvolver um raciocínio de forma lógica, de encadear argumentos coerentes, de articular ideias com fatos, de contextualizar conceitos... de pensar com as próprias ideias.

Confundimos o fato de termos “opinião” com a habilidade de pensar, e então passamos a vida reproduzindo ideias alheias como se fossem nossas, incapazes de perceber suas contradições e fragilidades. Somos como aqueles bonecos de posto de combustível, que precisam de um fluxo constante de ar externo para parar em pé. Se o compressor de ar for desligado, o boneco simplesmente cai porque não tem nada que lhe sustente. Do mesmo modo, se tirarmos de nossos discursos o que é reprodução automática de argumentos alheios, dificilmente sobra algo que pare em pé.

Substituímos o processo de pensamento próprio pela reprodução dos argumentos e visões de mundo de sujeitos a quem escolhemos “seguir”. E então nos tornamos bonecos de posto, dependentes de fluxos externos de “opiniões” para sermos notados; imbecis empoderados portadores de iPhones e conectados a redes sociais, orgulhosos da própria imbecilidade.

Peço desculpas ao leitor pela longa introdução, e passo ao caso concreto de que quero tratar. No último dia 7 o Ministro da Economia, Paulo Guedes, chamou os funcionários públicos brasileiros de parasitas. Sim, acabou pedindo desculpas. Disse que se arrependeu e que usou expressão infeliz. É mentira. Ele não se desculpou por arrependimento. O fez pela repercussão negativa do caso e por que ela poderia comprometer a aprovação da reforma administrativa que é prioridade do governo para o primeiro semestre do ano.

Mas não pretendo tratar das sandices do ministro. Me interessa, aqui, a forma como as bobagens que ele disse se espalham como praga entre milhões de bonecos de posto que as reproduzem sem qualquer base factual que as sustente.

Lemos e ouvimos em todos os cantos opiniões cheias de ódio contra os servidores públicos, essa “casta de privilegiados que ganham super salários e prestam serviços horrorosos à população”. Esse “bando de vagabundos que mamam num Estado que é grande demais e por isso não deixa o país crescer”. Será mesmo?

Apenas para demonstrar como corremos o risco de falar bobagem quando simplesmente reproduzimos discursos sem um exercício mínimo de pensamento próprio, trago alguns dados oficiais (e suas fontes, é claro).

Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as médias salariais dos servidores públicos no Brasil (incluindo as três esferas) são as seguintes:
- Servidores do Executivo: R$ 3.909,00;
- Servidores do Legislativo: R$ 6.223,00;
- Servidores do Judiciário: R$ 12.733,00.

Sim, é verdade que existem super salários no setor público. Mas, onde eles estão? Sim, existem juízes e desembargadores que, contrariando dispositivo constitucional que estabelece teto salarial para o serviço público (na casa dos R$ 39.000,00), ganham R$ 500.000,00 por mês. Mas isso justifica a generalização que acusa de parasita a professora da escola do seu bairro que ganha R$ 1.400,00 para ensinar seu filho mal educado a ler e escrever?

São parasitas os bombeiros que ganham R$ 2.500,00 para fazer seu trabalho sem os equipamentos adequados? Ou os policiais que, por R$ 2.800,00 entram em troca de tiros com bandidos portando armas sucateadas, ou precisam perseguir fugitivos com carro 1.0? Ou os servidores do INSS que ganham R$ 3.200,00 para dar conta do trabalho de três servidores porque o governo bloqueou as nomeações dos concursados que deveriam repor seus colegas que se aposentaram ou estão em licença para tratamento de saúde?

São parasitas os garis que ganham um salário mínimo para coletar o lixo que você não é capaz de separar direito e joga em sacos rasgados na frente da casa todos os dias? Ou os atendentes do posto de saúde que ganham R$ 1.600,00 para ouvir desaforos da população todos os dias por falta de médicos e de remédios que não são culpa sua?

São parasitas os professores da Universidade Federal da Bahia que, mesmo com recursos contingenciados, bolsas de estudo suspensas, laboratórios sucateados e um ministro da educação acusando-os de comunistas e fazedores de balbúrdia, descobriram uma forma de diagnosticar o Corona Vírus em três horas quando as técnicas usadas no resto do mundo levavam dias?

‘”Ah”, alguns respondem: “mas o Brasil tem funcionário público demais, por isso eles não trabalham”. Será?

Novamente os dados da OCDE, para o ano de 2019: No Brasil, 12% dos cidadãos com emprego formal são servidores públicos. É um dos índices mais baixos entre todos os países. Na Noruega esse índice é de 35%; na Dinamarca, 33%; Na Suécia, 29%; Nos Estados Unidos, 15%. A média da OCDE é de 22%. E isso considerando que, segundo dados do IBGE, 47 milhões de brasileiros trabalham na informalidade. Se esses trabalhadores tivessem emprego formal, o índice do país seria ainda menor.

Outro dado. O índice de servidor público por habitante do país. No Brasil são pouco mais de 12 milhões de servidores para uma população de cerca de 210 milhões, o que corresponde a seis servidores públicos para cada 100 habitantes. Na Finlândia são 25 para cada 100 habitantes; no Reino Unido, 20; No Chile (o paraíso do Paulo Guedes) são oito; Nos Estados Unidos, sete.

“Ah, mas os servidores tem aumento automático. Mesmo se o governo não arrecadar mais, tem que dar aumento todo ano”. Ora, não tem um jeito delicado de dizer: É MENTIRA! O próprio STF já decidiu, em processo iniciado em 2007, que o governo não precisa seguir data base para aumento ou reposição salarial, nem mesmo para repor inflação.

Para ficar apenas no caso dos professores de universidades federais, dos quais faço parte, o último aumento dado pelo governo foi em 2012, depois de uma greve de três meses. Já são oito anos sem, sequer, reposição. Segundo dados do próprio governo, desde 1994 a defasagem do salário dos professores federais chega a 42%. Apenas entre 2010 e 2019, segundo dados do Ministério do Planejamento, o déficit médio do salário dos servidores federais é de 32,6%.

Ora, o que leva as pessoas a acreditarem na mentira de que os servidores públicos tiveram aumento 50% acima da inflação? Quais servidores? Em qual período de tempo? Onde?

“Ah, mas o problema é como o Paulo Guedes disse: as aposentadorias generosas dos servidores públicos quebram o governo”. Mesmo? Desde 2013 os servidores públicos que ingressam nas carreiras de Estado têm regime equivalente ao do INSS. Para ter aposentadoria acima do teto, o servidor precisa pagar previdência complementar. Os únicos que não apenas mantiveram, mas aumentaram seus vencimentos e suas aposentadorias, foram os militares. E eles, é claro, estão de fora da reforma administrativa, como ficaram de fora da reforma da previdência.

E ainda tem a história da estabilidade. Esse dispositivo constitucional que os bonecos de posto acusam de ser uma aberração e motivo para a suposta má qualidade do serviço público. (Em breve escreverei um artigo específico sobre a lenda da má qualidade do serviço público). Ora, a estabilidade não é impedimento para que servidor público seja demitido. A lei 8.112, que é de 1990, já prevê a demissão do servidor público e tipifica os casos em que ela é possível. Entre 2012 e 2018, por exemplo, só no governo federal foram 3.745 servidores demitidos, uma média de 535 a cada ano, segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

A estabilidade do servidor público não é privilégio para assegurar má qualidade do serviço. Ela é garantia de impessoalidade na gestão de pessoas dentro das estruturas de governo. É a estabilidade que garante tranquilidade ao auditor fiscal da prefeitura para apontar irregularidades cometidas pelo prefeito ou pelo secretário de fazenda. Sem estabilidade, qual auditoria terá condições de, por exemplo, reprovar a prestação de contas do prefeito? Se a existência dos “cargos de confiança” já é instrumento para governantes encherem as estruturas de governo de parentes e amigos incompetentes, o que seria se todos os cargos públicos fossem passíveis de demissão e livre nomeação?

Os exemplos poderiam se multiplicar, mas o texto já está longo demais. A questão é que a estabilidade não é, nem nunca foi, garantia de impunidade para servidor ruim. A lei prevê, sim, diversas possibilidades de demissão de servidor, e eles de fato são demitidos todos os dias, em todas as esferas de governo.

Mas os bonecos de posto não processam as informações. E acusam quem as menciona de comunista, o que acreditam ser suficiente para desqualificar todas as provas que estão na frente do nariz de quem quiser ver. Sem um pingo de pensamento autônomo, só tem o que dizer porque reproduzem como papagaios as sandices que seus “mitos” vomitam todos os dias.

O atoleiro político, social e cultural em que estamos é provavelmente o pior da nossa história. E as chances de sairmos dele são quase nulas enquanto continuarmos nos comportando como bonecos de posto, reproduzindo sandices, fake news e discursos de ódio sem qualquer fundamento, apenas por preguiça de pensar.