Nos últimos dias
muitos amigos têm “cobrado” artigos para o blog.
Afinal, em tempos de quarentena, não faltariam nem tempo nem assunto para
escrever. Eles têm razão. De fato, tempo e assunto não faltam. Mas, tempo e
assunto seriam suficientes para escrever?
O problema, no meu
caso, é que fico em dúvida se realmente tenho algo útil a escrever nesse
momento, ou se deveria “aprender” mais sobre ele antes de dizer qualquer coisa.
Só porque o mundo inteiro não fala de outro assunto não significa que eu também
tenha que falar. Até porque o mundo inteiro fala tanta bobagem, tanta coisa sem
pé nem cabeça, que dá um trabalho danado processar tudo e tentar refletir
minimamente.
O que estamos
passando não é algo simples. Sim, a pandemia vai passar. Mas o mundo não vai
voltar ao normal. Afinal, o “normal” é justamente a raiz de tudo o que estamos
passando.
A quarentena deveria
servir para fazermos algo para o qual não temos tempo durante a correria da
vida diária, “normal”: pensar. Vejo gente que passa o dia enchendo o saco dos
outros nas redes sociais, repetindo centenas de vezes para que “fiquem em casa”,
que tenham com os velhinhos e com os profissionais da saúde a empatia que eles próprios não têm com os miseráveis que estão passando fome e para quem os planos de
auxílio do governo são apenas notícias na televisão. Vejo outros montando e
reproduzindo vídeos, fotos e piadinhas sem graça sobre o coronavírus e sobre
como “lidar” com ele e com a quarentena que ele nos impôs, numa tentativa
desesperada de negar a seriedade do que está acontecendo.
Vejo gente disputando
para ver quem é mais criativo nos dias de confinamento, ou quem é mais
inteligente nas brincadeiras que inventam para distrair os filhos, cuja
presença em casa parece ser motivo de pavor maior do que o vírus. Vejo outros
fazendo poses ao lado de livros em tentativas cômicas de mostrar que sua
quarentena é intelectualizada. Vejo outros ainda postando frases de efeito
sobre como o confinamento lhes proporcionou oportunidade de pensar sobre si
mesmos e sobre suas prioridades, como se o fato de nunca terem sido capazes de
fazer isso antes fosse motivo de orgulho. Será mesmo que alguém que precisou de
uma pandemia e de confinamento para pensar na própria vida é alguém que tem
algo útil a dizer aos outros neste momento?
Vejo gente supostamente esclarecida embarcando em teorias da conspiração estapafúrdias,
reproduzindo fake news e ajudando a
assustar e confundir as pessoas quando informação e conhecimento científico são
os melhores instrumentos que temos.
Vejo bate-bocas
estúpidos sobre qual partido ou grupo político está se comportando melhor
diante da pandemia, sustentados com argumentos que envergonhariam um estudante
do jardim de infância.
Esses comportamentos
são, no fundo, estratégias de fuga, tentativas de distração para afastar do
pensamento que assusta: o mundo não voltará ao “normal”. Não, nós não vamos
ficar dois ou três meses trancados em casa para depois retomarmos nossas vidas
como se nada tivesse acontecido. Não vamos trabalhar mais intensamente durante
um tempo para repor aulas e tarefas atrasadas e depois tirarmos férias e
esquecer tudo o que passou. No fundo, todos sabemos disso, e é isso que nos angustia.
É claro que isso não
é, necessariamente, ruim. A implosão das bases de nosso estilo de vida pode
trazer algo bom, pode ser o início de um novo modelo de sociedade e de
organização da vida. Mas isso não muda o fato de que o mundo será diferente
quando isso passar, e toda mudança gera angústia e medo.
Por isso, um
exercício interessante é tentar imaginar como será o mundo depois da pandemia.
E aqui talvez haja espaço para um pouco de otimismo, mesmo que ele se aproxime,
perigosamente, da ingenuidade.
De minha parte, espero
que depois de tudo isso a valorização da ciência esteja realmente entre as
principais lições que aprendemos. Uma valorização que passa pelo entendimento
do que é a ciência, de como ela funciona e de quais são seus métodos para
produzir e socializar conhecimento. Teremos realmente aprendido algo se
passarmos a organizar nossa vida e nosso pensamento com um pouco mais de
ciência e de método científico. Se as “bases científicas” não forem apenas
justificativa para os jornalistas de todo canto pedirem para ficarmos em casa,
mas se tornarem de fato parâmetro de organização de nossas vidas e da nova
sociedade que precisaremos construir.
Espero que os
“fodões” das redes sociais, que agora cobram dos cientistas e das universidades
soluções para a pandemia e uma vacina para o vírus, não se transformem, em alguns
meses, nos sabichões defensores de cortes no orçamento da educação, da ciência
e da pesquisa. Talvez o vírus que causará a próxima pandemia mundial seja hoje carregado
por algum pequeno roedor endêmico das barrancas do Rio Uruguai. Então, quando
algum professor universitário desenvolver um projeto de pesquisa para mapear pequenos
roedores da região e investigar os patógenos que eles carregam, que esses “fodões”
do FaceBook não levantem a voz para vomitar comentários imbecis sobre como os
professores da universidade estão “desconectados da realidade” pesquisando “coisas
sem serventia para a população” com o “dinheiro do povo que paga impostos”. E,
se isso acontecer, que tenhamos coragem e decência para mandar que se cale, e
defendamos a ciência contra o achismo e a ignorância, mesmo que eles estejam ao
nosso lado, na nossa família.
Espero que os
governos entendam que milhões de dólares pesquisando vida silvestre, por
exemplo, para mapear outros vírus e seus potenciais riscos para a humanidade,
são uma pechincha perto dos trilhões gastos para tentar amenizar os estragos
econômicos e do incalculável custo das vidas perdidas por uma pandemia global.
E que aceitem, de uma vez por todas, que o mundo seria, sim, um lugar melhor,
se gastássemos em pesquisa para salvar vidas metade do dinheiro que gastamos em
armas para destruí-las.
Que sejamos capazes
de reconhecer não apenas a importância das ciências médicas para a pesquisa de doenças
e de suas curas, mas o potencial das ciências humanas para compreender os
impactos sociais de abalos econômicos, de crises humanitárias, de charlatanismo
político. Que entendamos que os estragos de um modelo econômico socialmente
injusto e de um governo fascista podem ser tão grandes quanto os de uma pandemia,
e reconheçamos, assim, que a história e a ciência política nos são tão
importantes quanto a medicina.
Espero que a
sociedade entenda que o conhecimento cientifico nem sempre tem uma “aplicação”
imediata, porque o que move o verdadeiro cientista não é a vontade política de
resolver esse ou aquele problema, mas o desejo de compreender o mundo à sua
volta e tudo o que existe nele. Se esse conhecimento será transformado em
tecnologias, em objetos, em máquinas, em vacinas, em remédios, em venenos ou em
armas, cabe à sociedade decidir depois.
Se todos tivéssemos tido
aulas de economia e ciência política na escola, entenderíamos as relações entre
os modelos econômicos dos diversos países e sua estrutura de atuação diante da
pandemia. Entenderíamos porque o Brasil não consegue implantar uma política de
ajuda econômica aos mais vulneráveis. Entenderíamos porque os EUA serão provavelmente a nação
com mais mortes pela COVID-19, mesmo sendo o país mais rico do mundo. Entenderíamos porque nosso presidente nega a ciência
e qualquer resquício de racionalidade em seus discursos e ações e ainda assim
mantêm um terço dos brasileiros fieis a ele. Entenderíamos porque nosso
ministro da economia paralisou com a chegada da pandemia, incapaz de pensar
qualquer política pública para além de privatizações e sucateamento da
estrutura do Estado. Saberíamos a diferença entre liberalismo e neoliberalismo.
Saberíamos quem foi Keynes e porque estão falando dele novamente como modelo de
ação do Estado. E então talvez nossas postagens em redes sociais não fossem tão
toscas.
Espero que as pessoas
valorizem o conhecimento científico em todos os seus níveis, desde as lições de
biologia do ensino fundamental até a pesquisa de ponta, pois assim talvez nos
tornemos menos propensos a acreditar em fake
news, em líderes imbecis, em babaquices de redes sociais, em argumentos
toscos, em negacionistas e curandeiros políticos.
Talvez depois da
pandemia não esqueceremos tão rapidamente da importância da ciência, e pararemos
de achar graça em defensores do terraplanismo. Talvez até sejamos capazes de
perceber que o terraplanismo, o culto à violência, o fascismo, e negacionismo,
o ultraliberalismo, o machismo, o anti-intelectualismo e tantos outros “ismos”
estão todos interligados e precisam ser combatidos, todos, em suas estruturas
fundamentais.
Espero, enfim, que tenhamos de fato um mundo melhor depois que tudo isso passar. E que o
vírus não tire de muitos de nós a possibilidade de conhecê-lo.
Texto maravilhoso! Análise perfeita e reflexão profunda do momento que vivemos, e sobre o qual, com certeza, devemos pensar!
ResponderExcluirParabéns Professor Ivann. Um texto que retrata perfeitamente o que vivemos nesse momento. Uma pena que as pessoas que deveriam, não vão fazer sua leitura.
ResponderExcluirParabéns pelo seu texto! Foi muito proveitoso encontrar seu blog. Farei dele uma das leituras indispensáveis no dia a dia.
ResponderExcluirBrilhante análise! O professor conseguiu perceber e descrever como poucos o que acontece em nossa sociedade neste momento.
ResponderExcluirParabéns. Espetacular texto.
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