sexta-feira, 29 de novembro de 2019

VIVA A POBREZA! MORTE AOS POBRES!


Um dos debates mais instigantes para os pesquisadores que, como eu, se dedicam à investigação das relações entre cultura e comportamento sociopolítico, é aquele em torno das “heranças culturais”. Trata-se de tentar compreender como o passado comum e seus mitos, as tradições compartilhadas, o imaginário religioso, o padrão de desenvolvimento institucional e tantos outros fatores estruturais ajudam a configurar os enquadramentos por meios dos quais um determinado grupo percebe o mundo, a si mesmo e aos outros, e como age em função disso.

É esse tipo de abordagem que está na base, por exemplo, das tentativas de compreender o racismo arraigado na cultura brasileira tomando, como um de seus elementos constitutivos mais importantes, nosso modelo de colonização e nossa herança escravocrata.

Os efeitos da escravidão no imaginário coletivo têm variações significativas entre as sociedades que a praticaram. Roberto DaMatta, por exemplo, mostrou como o racismo se manifesta de maneira distinta nos Estados Unidos e no Brasil, embora seja elemento marcante e definidor das relações sociais nos dois países.

Hoje quero tratar da forma como nossa herança escravocrata continua a influenciar a maneira como o brasileiro médio percebe não apenas o negro especificamente, mas o pobre como categoria social ainda mais ampla. Claro, não entro aqui no debate sobre a sobreposição entre cor e condição econômica no Brasil, já demonstrada e plenamente comprovada como um fato estruturante de nossa desigualdade. A esmagadora maioria dos pobres em nosso país é de negros, e a grande maioria dos negros é pobre. Contudo, para as reflexões que seguem, tomarei a pobreza em seu sentido econômico como categoria de análise.

A relação entre senhores e escravos, no Brasil, não era apenas uma relação entre pessoas em condições econômicas distintas. Ela sempre foi percebida também como uma relação entre diferentes níveis de moralidade. Os escravos eram vistos como pessoas inferiores em todos os sentidos, o que inclui a noção de caráter. Eram seres degenerados, inclusive frequentemente desumanizados.

Essa característica, que remete ao período da escravidão, não desapareceu com o fim daquele regime. Ao contrário, ela se consolidou e se arraigou ao imaginário da população. No Brasil, pobres não são apenas pessoas sem dinheiro; são pessoas consideradas inferiores, ignorantes, incompetentes, não confiáveis, moralmente degeneradas.

Como fenômeno social, a pobreza em nosso país é um excelente fator de marketing e aceitação. Ela é objeto de curiosidade, de observação. Novelas, filmes, peças de humor, documentários... Sempre tiveram na pobreza e na miséria econômica uma fonte de inspiração e garantia de sucesso. Mas isso nunca foi capaz de modificar o desprezo profundo que principalmente as classes média e alta sempre nutriram pelo pobre como ser humano. A elite brasileira nutre certo fascínio pela pobreza, mas tem ojeriza, desprezo e nojo pelos pobres, de quem se considera moralmente superior.

É assim que, por exemplo, vestir-se de mendigo maltrapilho é garantia de sucesso no carnaval, como se isso satisfizesse uma curiosidade profunda e nutrisse um desejo inconsciente de sentir, por algumas horas, como é viver aquele “estilo de vida”. Mas em todos os outros dias do ano o mendigo e os miseráveis são objeto de xingamento, vistos como sujeira nas cidades, tratados como lixo, tornados invisíveis e desprezados sistematicamente.

E o mesmo profissional liberal que se veste de mendigo no carnaval, que vai à igreja e reproduz um discurso religioso de valorização da pobreza como fator de dignificação, é o que defende o extermínio de negros, de moradores da favela, de “marginais”. Afinal a “marginalidade”, em nosso imaginário, sempre esteve associada aos pobres, aos moradores da periferia. E a “marginalidade”, assim como a pobreza que lhe está associada, não se combate com políticas de assistência e de inclusão; se combate com políticas de extermínio.

Mas, voltemos à visão dos pobres como seres inferiores. Ela é tão forte em nossa cultura que chega a se propagar até mesmo entre os pobres. Os níveis de pobreza, como sabemos, são muitos, o que assegura que, independentemente da condição em que um cidadão se encontra, sempre é grande a probabilidade de que alguém esteja ainda pior. Por isso é comum vermos pobres com nojo de pobre, pessoas que por estarem, mesmo que temporariamente, em situação econômica ligeiramente mais confortável que o vizinho, já se acham melhores que ele e no direito de reprimi-lo moralmente por sua condição.

Basta encontrar alguém “mais pobre” do que ele que o brasileiro já se vê na condição de superior e se sente à vontade para discursar sobre os maus hábitos dos “pobres”, sobre sua falta de iniciativa e de higiene, sobre seus hábitos reprodutivos e número de filhos, sobre sua falta de “disposição” para trabalhar...

Por isso damos tanta importância a coisas que simbolizam nossa suposta “condição melhor”. Afinal, afirmar nossa condição econômica passa a ser uma forma de indicar ao mundo a natureza de nossa fibra moral. O sujeito ganha 50 reais de aumento no salário e a primeira coisa que faz é contratar uma faxineira para fazer os trabalhos considerados degradantes, como esfregar o chão e limpar o banheiro. Afinal, trabalhos degradantes são coisa de pobre, pois pobre é moralmente degradado. Dados da OMC, por exemplo, mostram que mesmo estando longe de ser um país rico, o Brasil é a nação do planeta com o maior número de faxineiras e empregadas domésticas...

E assim construímos todo um modelo mental, um imaginário coletivo de significação da condição econômica dos outros a partir de referências morais. Afinal, como somos um país onde as pessoas são livres, a pobreza só pode ser resultado de degeneração moral, de alguma falha no caráter. Assim como a riqueza é sempre vista com inveja e admiração, nunca com desconfiança. Afinal, quem rouba são apenas os pobres, que praticam crimes porque gostam ou porque não são “gente de bem”. Além dos políticos, é claro.

Empresários, médicos, advogados são gente de estirpe superior. Jamais sonegam impostos, não tiram proveito das pessoas, não enganam ninguém, nunca faltam com a ética, são seres humanos exemplares, não tratam seus empregados com desrespeito e preconceito, não se acham superiores. Quando o médico, por exemplo, dá uma lição de moral sobre os hábitos alimentares a um pobre que o consulta por causa de uma gripe forte, ele só está dando uma abordagem integral ao seu estado de saúde, jamais se considerando na condição de ser superior que tem o direito de dizer aos outros como devem viver suas vidas.

Essa marca cultural brasileira sempre permeou nossas relações sociais, sempre esteve na base dos arranjos que organizaram nossa vida política, nosso mundo do trabalho. Não é algo novo. O que temos de novo é o fato de que, ao contrário de outros tempos, esse elemento cultural deixou de ser algo velado, disfarçado. Hoje é algo que muitas pessoas fazem questão de assumir, de demonstrar, de orgulhosamente espalhar pelas redes sociais.

Talvez seja porque vivemos tempos em que o próprio governo toma a noção de que pobre é sinônimo de problema e causa dos males do país como parâmetro para governar. Afinal, como brilhantemente diagnosticou nosso ministro da economia, nem lidar com dinheiro os pobres sabem. "Basta ganhar um pouco de dinheiro que já saem gastando tudo", ao contrário dos ricos, seres superiores e mais conscientes, que "se preocupam em investir e capitalizar".

Essa ideologia é muito mais ampla. Sistema de previdência para amparar os pobres? Coisa de comunista que quer falir o Estado. Leis trabalhistas para proteger os trabalhadores pobres? Empecilho ao desenvolvimento econômico que os empresários brasileiros, esses seres angelicais e de moral elevadíssima, só não conseguem efetivar porque os direitos dos seus funcionários atrapalham. Educação pública? Desperdício de dinheiro, pois a lei diz que somos todos iguais e, portanto, todos devem cuidar da sua vida, empreender e ganhar dinheiro sem ajuda do governo. Políticas de combate a pobreza e às desigualdades? Absurdo comunista que usa os impostos dos “cidadãos de bem” para ajudar vagabundo preguiçoso.

Segundo essas visões de mundo, o Brasil só vai melhorar mesmo é quando acabar de vez com esse negócio de direitos, de proteção social, de combate à pobreza com políticas públicas, de educação gratuita, de proteção dos vulneráveis. Chega desse negócio de cobrar impostos dos “cidadãos de bem” para financiar políticas de combate à desigualdade. O dinheiro dos impostos deve ser usado para comprar mais armas e munição, e “mandar bala na bandidagem”. De preferência, “bem na cabecinha”.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

PAULO GUEDES E A FÉ NO LIBERALISMO DE MENTIRINHA


Paulo Guedes já emplacou a reforma da previdência. Agora encaminha a administrativa. A tributária, dizem, será a próxima. Por que ela ficará por último quando todos os modelos teóricos e estudos empíricos indicam que é, de longe, a mais importante? Bom, essa é a pergunta de um milhão de dólares. Voltaremos a ela...

É um caso a ser estudado a relação da mídia brasileira (e da elite do país) com o governo Bolsonaro. Não passam um dia sem ridicularizar – e com razão – o presidente da república, aproveitando o IBOPE do palhaço-chefe do circo em que se converteu a capital nacional.

Por outro lado, bajulam o ministro da economia, comemoram suas “reformas”, acreditam em seu liberalismo tosco e ajudam a vender seu discurso para a população. Como se Paulo Guedes fosse uma ilha de sanidade e visão esclarecida dentro de um governo paranoico, desorientado e sem a mínima compreensão dos problemas do país e de como resolvê-los.

Ora, será mesmo possível separá-los assim? Será mesmo que o chicago boy é esse poço de esclarecimento liberal no buraco sem fundo do governo Bolsonaro?

Paulo Guedes tinha várias opções de candidatos adeptos do liberalismo dentro do espectro republicano. Amoedo, Álvaro Dias, Alkmin e até mesmo Marina Silva seriam opções republicanas para a implantação de programas liberais. Mas a escolha foi por Bolsonaro...

Afinal, o que a associação com Bolsonaro diz sobre a natureza do liberalismo que Guedes propõe? Ou seria só uma coincidência o fato de seu modelo de país liberal ser justamente o Chile de Pinochet? Por que os telejornais citam as “reformas chilenas dos anos 70 e 80” para se referir ao modelo proposto por Guedes, mas sempre esquecem que os anos 70 e 80 do século XX foram os anos mais sangrentos da mais violenta e mais corrupta das ditaduras militares no continente latino-americano? Por que não buscam associações entre a “experiência chilena” do final do século passado e a convulsão que assola o país hoje? Ou alguém ainda acredita que elas não estão relacionadas?

Já escrevi em outros textos deste blog (especialmente em “Liberais conservadores?”) que o governo Bolsonaro (aqui incluso seu ministro da economia) pode ser chamado de muitas coisas, mas “liberal” certamente não está entre elas.

Ora, por que um economista liberal se associaria a um governo autoritário, moralista, machista, xenófobo, propagador do anti-intelectualismo e do ataque às instituições? Bem, talvez seja porque o liberalismo que ele defende precise de autoritarismo, de negação da democracia e de violência para ser implantado. Ou porque se trata de um liberalismo tão tacanho que não teria qualquer chance de prosperar em um governo minimamente comprometido com os preceitos republicanos e os procedimentos democráticos de construção de políticas públicas.

A reforma da previdência foi construída a partir de uma visão da pobreza e dos pobres como um peso, como um carma político, não como uma consequência do modelo de sociedade baseado na exclusão e na concentração de riqueza.

O bolsonarismo é adepto da tese de que os pobres devem ser eliminados. Por algum tempo isso foi disfarçado. Não é mais. Internamente as divergências são apenas em relação ao método de eliminação. O presidente e seus filhos, por exemplo, defendem a eliminação direta dos pobres, seja pela polícia, seja pelos “cidadãos de bem” armados a prontos para “se defender”. A ala do ministro da economia prevê sua eliminação pela própria pobreza, levada ao ponto de impossibilitar a sobrevivência.

(Não estou discutindo a necessidade de uma reforma previdenciária. Ela era evidente. Mas a mim não resta qualquer dúvida de que a reforma aprovada era a pior possível para a parcela mais pobre da população).

A reforma administrativa complementa o serviço. Depois de demonizar tudo o que é público, com ajuda da grande mídia e seus “analistas” de meia tigela, está pavimentado o caminho para o sucateamento e a privatização. Depois de popularizar a tese de que tudo se resume a equilibrar as contas públicas, ninguém reage à proposição de acabar com a obrigatoriedade de investimentos mínimos em saúde e educação. Depois de convencer a sociedade de que tudo o que existe de ruim no mundo é culpa dos servidores públicos, está legitimada a empreitada para caçá-los.

No último dia 05, enquanto apresentava seu pacote de medidas da reforma administrativa, Paulo Guedes explicava por que quer extinguir a estabilidade dos servidores públicos, especialmente daqueles que são filiados a partidos políticos: “Se é filiado a partido é militante. Eu não vou dar estabilidade para militante”.

A psicanálise ensina que a linguagem costuma nos trair, revelando o que o inconsciente realmente alimenta.

Ora, senhor ministro, a estabilidade é uma prerrogativa constitucional, não uma dádiva que o senhor dá para quem foi aprovado em concurso e simpatiza com sua ideologia. Estabilidade é uma prerrogativa do cargo, não um presente que o senhor decide quem merece e quem não merece, quem vai receber e quem não vai.

Mais que isso: a estabilidade é um preceito legal criado justamente para impedir que governos paranoicos como o que o senhor integra se utilizem da condição de autoridade política para perseguir servidores por motivos ideológicos – exatamente o que o senhor propõe fazer! Ou seja, a estabilidade não é uma garantia de emprego eterno, haja vista que existem, sim, e muitas, possibilidades de demissão de servidor público. A estabilidade existe justamente para preservar servidores de governos autoritários, evitando que utilizem o poder de governo para “punir” quem pensa diferente. Os motivos que o nobre ministro apresenta para “acabar com a estabilidade” são justamente os que a tornaram um preceito constitucional!

Mas, é claro, os grandes jornais e os grandes jornalistas do Brasil não deram atenção a essa parte do discurso do ministro. Importaram-se apenas com os números. Números que, tendo saído das cabeças e planilhas do ministério da economia, apontam maior chance de equilíbrio das contas públicas nos próximos anos. Mas, como nada é garantido, nem mesmo para Guedes, eis que ele propõe uma medida de segurança, uma garantia caso o plano não dê certo: reduzir a jornada de trabalho dos servidores, com proporcional redução dos salários.

Apenas mais um “sacrificiozinho”, segundo o nobre ministro. Afinal, até agora os servidores só foram atingidos por coisa pouca:
- Sua alíquota de contribuição previdenciária foi tornada progressiva, chegando a 22%;
- Contribuirão mais e durante mais tempo, mas ainda assim não poderão se aposentar com salário integral;
- Terão que continuar contribuindo depois de aposentados;
- A reforma prevê o bloqueio de todos os sistemas de promoção e progressão, impedindo-os de ascender na carreira.
- Terão sua jornada de trabalho e seus salários reduzidos, mas o volume de trabalho, obviamente, não.
- Os cortes orçamentários deteriorarão ainda mais as já precárias condições de trabalho, piorando os resultados, o que alimentará o ódio que a população é instigada a desenvolver contra o serviço público.

Diante de tudo isso, afinal, o que é ter a estabilidade “negada” pelo ministro?

Mas, e a reforma tributária? Ora, o ministro liberal disse que “essa fica para depois”, e deve se limitar a “unificação de tributos” para “simplificar o sistema de impostos no país”.

Pois é. Unificar impostos é, de fato, tudo o que precisamos. Afinal de contas, que importância tem o fato de nosso sistema tributário:
- Ser um dos mais injustos do planeta segundo vários organismos internacionais, como a ONU, já que é bancado pelos mais pobres?
- Ser baseado no consumo e não renda, o que faz com que a maior carga de tributos esteja vinculada à compra de produtos básicos e não de artigos de luxo?
- Adotar o modelo de progressão invertida, fazendo com que, proporcionalmente, os tributos diminuam à medida que a renda cresce?
- Não incidir sobre o mercado financeiro e a especulação, tornando o país um paraíso para banqueiros (enquanto o país afunda, o Itaú anuncia, na semana passada, novo recorde de lucros no terceiro trimestre do ano!)?

Curioso. Um “liberal radical” que considera a estabilidade do servidor público uma grande ameaça ao crescimento do país, mas vê no pior sistema tributário do planeta um probleminha secundário, que não tem pressa para ser resolvido, e que se pode ajustar com uma simples “unificação de impostos”.

Continuo acreditando que um governo realmente liberal (no sentido político e clássico do conceito) faria bem ao Brasil. Só espero que o país sobreviva aos liberais de mentirinha que sequer ficam constrangidos ao destruí-lo em velocidade nunca antes vista, e que depois deles ainda haja um Brasil para escolher, democraticamente, uma opção liberal no futuro.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O BOLSONARISMO CONTRA O BOLSONARISMO


Em outro texto deste blog, publicado no dia 24 de maio (https://ivannlago.blogspot.com/2019/05/as-bases-do-bolsonarismo.html), tratei das “bases do bolsonarismo”, de como ela se sustenta, como é mobilizada e como tende a encolher progressivamente na mesma proporção em que se radicaliza.

Não era uma previsão, nem um exercício astrológico de consulta ao futuro. Era apenas uma leitura do cenário político feita a partir do conhecimento acumulado pela ciência política. Apesar de estar fora de moda, a ciência possui ferramentas que nos permitem identificar padrões, aprender com eles e, então, deduzir e fazer projeções. E por mais que o bolsonarismo negue a ciência, suas descobertas e seus modelos, isso não muda o fato de que tais modelos ainda se aplicam ao bolsonarismo.

Pois uma das descobertas da ciência política, no que diz respeito aos governos autoritários, sustentados pela ideologia do ódio e pelas teorias da conspiração, mostra como o mesmo elemento que o sustenta é também umas de suas maiores ameaças.

Catapultado ao poder pelo discurso do ódio, da destruição do sistema e do ataque aos “inimigos” políticos, Bolsonaro precisa manter inflamada sua base de apoio. O problema é que essa base de apoio tende a diminuir à medida que o governo é incapaz de demonstrar resultados para além das bravatas com as quais se elegeu.

Como não há projeto de país, a radicalização do discurso, os ataques, a agressividade e as teorias conspiratórias se tornam a única opção para manter mobilizada a base social de apoio. E é aí que está o problema. Como escrevi em maio:

À medida que o presidente se concentra em criar e alimentar polêmicas, espalhar teorias da conspiração e incentivar ataques às instituições, alimenta e reforça o apoio do “núcleo duro”, mas afasta progressivamente os seus eleitores mais moderados.

(...) Quanto mais Bolsonaro se concentra em inflamar seu “núcleo duro” de apoiadores, mais perde apoio entre os demais segmentos que ajudaram a elegê-lo. A aposta é de alto risco e o presidente dá fortes indícios de subestimar o potencial destrutivo, para si mesmo e para seu governo, dos efeitos da estratégia que utiliza.

É o que acontece com todos os ditadores. Ao revelar sua incapacidade de cumprir o que prometeram, eles se concentram em uma militância cada vez mais inflamada de um grupo cada vez menor, mais fanático e mais próximo do ditador. E nesse contexto as teorias conspiratórias revelam sua face mais autodestrutiva: para se manter vivas, elas sempre precisam de conspiradores, que passam a ser vistos nos círculos cada vez mais próximos.

Sempre há conspiradores, e eles são vistos cada vez mais perto, entre os mais íntimos, até que sobre apenas o próprio ditador.

Como eu disse, não há bruxaria nem previsão de futuro. O que está acontecendo com o governo é a reprodução de uma tendência presente em quase todos os regimes de mesma natureza. As crises não são causadas pela oposição ou por movimentos externos. Elas nascem e se proliferam no interior do próprio governo, do próprio partido.

O que uniu políticos bolsonaristas não foi um projeto de nação, mas um aglomerado de projetos de poder, oportunismos e vaidades. Ocorre que, rapidamente, essas pessoas percebem que não há lugar para tantos egos nas estruturas do poder, o que torna inevitável a guerra aberta dentro do próprio grupo.

Conflitos, ataques, acusações, traições, boicotes, puxadas de tapete, não são uma crise passageira. É a natureza do regime se revelando. É tendência que só irá se intensificar. Enquanto o Congresso Nacional encaminha reformas e opera, na prática, como se o país tivesse um regime parlamentarista, o governo irá se afundar cada vez mais em brigas domésticas, polêmicas e ataques oriundos do seu próprio partido e dos grupos de apoiadores mais identificados com ele.

Fazer arminha com a mão, atacar a esquerda e difamar professores de filosofia serviu para conquistar votos. Mas não serve para manter unido os apoiadores de um governo que escancara diariamente a ausência de uma noção mínima de país e de gestão. Sobram as vaidades e os egos, que esfacelam a base de apoio em nome de disputas pessoais e interesses individuais.

Esse canibalismo é tendência identificada em quase todos os regimes autoritários. E seu controle demanda um governo forte, inteligente, capaz de atacar suas origens e controlar seus efeitos deletérios sobre o regime. No Brasil, contudo, o presidente e seus filhos são justamente os mais alucinados entre os canibais, o que torna muito difícil (para não dizer impossível) estancar a sangria.

As notícias de Brasília dão conta de um crescimento das apostas de que Bolsonaro não conclui o mandato. Como sou cientista e não astrólogo, não farei previsões sobre uma eventual interrupção no mandato do presidente. Mas há, sim, algumas coisas que podemos projetar (o que é diferente de prever) com certo grau de segurança. Dentre elas, podemos destacar uma:

As crises, no governo e no seu partido, continuarão e se tornarão cada vez mais intensas, mais viscerais e mais violentas. E virão de pessoas e grupos cada vez mais próximos ao clã Bolsonaro. Se o governo ruir será, de fato, por meio de uma implosão, pois será de dentro para fora.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

FÁBRICA DE DIPLOMAS


Não é nenhuma novidade que a esmagadora maioria das pesquisas, no Brasil, é feita nas universidades públicas. Com exceção do presidente da República e do Ministro da Educação – e outros analfabetos que os têm por “mitos” – é de amplo conhecimento que também são as universidades públicas que oferecem as melhores formações, tanto na graduação quanto na pós-graduação.

Tudo bem que vivemos em tempos em que dados científicos valem menos que feitiçaria e opinião de bruxos e astrólogos, mas no caso das universidades as evidências são abundantes demais para serem negadas, até mesmo pelo obscurantismo que orienta o atual governo.

Dados como os que a Folha de São Paulo divulgou no último dia 07, e que serviram de base para um ranqueamento das 197 universidades existentes no país, não deixam margem para “interpretações ideológicas”, mesmo para aqueles que fizeram da destruição das universidades públicas uma obsessão.

Das 50 primeiras posições do ranking, apenas sete são ocupadas por universidades privadas. Dessas sete, quatro são Pontifícias Universidades Católicas – PUCs – (do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro, do Paraná e de Minas Gerais). As outras três são: Universidade Presbiteriana Makenzie, Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Universidade de Caxias do Sul.

Entre as exceções, portanto, apenas uma não é vinculada ao mundo religioso. Quatro são vinculadas à igreja católica (PUCs), uma aos jesuítas (UNISINOS), uma a grupo presbiteriano (Makenzie). A exceção – Universidade de Caxias do Sul – como se sabe, embora seja uma fundação de direito privado, recebe grande aporte de recursos do poder público municipal.

Mesmo se expandirmos a base de análise, ampliando para as 100 primeiras instituições do ranking, apenas um terço será composta de instituições privadas.

No topo da lista, nenhuma surpresa. Lá está a USP, tradicionalmente a melhor colocada entre as universidades brasileiras, também em levantamentos internacionais, feitos com regularidade. Em segundo lugar, outra estadual de São Paulo, a UNICAMP. O restante das 100 primeiras, com exceção da UNESP, para indignação do Ministro da Educação, é todo composto por federais...

Se considerarmos apenas a produção científica especificamente, o quadro fica ainda mais evidente: das 100 primeiras colocadas, apenas 13 são privadas. Entre elas, a melhor colocada está em 19° lugar. No quesito “ensino”, são 14 entre as primeiras 100, das quais seis são PUCs.

Mesmo com o vergonhoso processo de sucateamento em curso, as universidades públicas ainda são responsáveis por mais de 95% da produção científica do país. Concentra quase a mesma proporção de programas de pós-graduação strictu sensu, especialmente os de doutorado. Na média geral dos indicadores, as públicas são 43 das 50 melhores instituições.

Não há feitiçaria capaz de negar o que os dados evidenciam. São as universidades públicas as grandes responsáveis pela produção científica, pela pesquisa de ponta, pela formação qualificada no país.

E não é por falta de “incentivo” que as instituições privadas não melhoram sua qualidade. Para usar um termo adorado pelos liberais de meia tigela que sonham “reformar” nosso país, elas têm muitas “vantagens competitivas”. Dos cofres do governo, tem acesso ao FIES e ao PROUNI. Indiretamente, a maioria de suas mantenedoras tem incentivos fiscais, filantropia, acesso a linhas de crédito especiais, apoio de governos locais.

Há muito a ser dito (e escrito, e pensado, e debatido) sobre o processo de mercantilização do ensino superior, sobre como ele se transformou em um “filão de mercado”, em uma “oportunidade de ouro para empreendedores”. Ou sobre as relações pouco republicanas entre agentes públicos de alto escalão e as corporações empresarias vinculadas, por exemplo, ao Ensino à Distância. O “mercado” do ensino superior no Brasil é, sob vários aspectos, uma grande fábrica de diplomas. Mas disso tratarei em outro texto.

Enquanto as universidades privadas caminham a passos largos, e conscientemente, para se consolidarem como fábricas de diplomas, são as universidades públicas que, mesmo morrendo à míngua, continuam produzindo o que há de melhor no ensino superior do país. E fazem isso, nunca é demais lembrar, APESAR do governo e das políticas educacionais, não POR CAUSA delas.

Já passou da hora de a sociedade brasileira compreender o papel e a importância da ciência, da pesquisa, do ensino superior. E já passou da hora de reconhecer a importância de quem faz pesquisa, de quem produz ciência, de quem ensina com qualidade.

Pois é! Enquanto as universidades privadas, com raríssimas exceções, fabricam e vendem diplomas com a simpatia e o apoio do governo, são as públicas que, sucateadas, perseguidas e boicotadas pelo mesmo governo, colocam o Brasil em 23° lugar (Nature Index) entre os maiores produtores de conhecimento científico no mundo.

Basta de governos analfabetos a definir o que é educação! Basta de fake news, de mentiras grotescas, de distorção de informações sobre as universidades públicas e sobre seus professores e estudantes! Basta de charlatanismo a guiar nossas políticas educacionais! Basta de um Ministro da Educação se esforçando diariamente para destruir o pouco de excelência que ainda há na ciência brasileira! Basta de mentiras sobre as universidades federais, produzidas em massa nos porões do próprio governo e disseminadas por analfabetos agindo como hordas de imbecis, especializados em criticar o que não conhecem!

Basta de uma elite nacional que sempre usou as universidades públicas para formar seus filhos, mas nunca teve a decência para assumir papel de apoio à ciência e a pesquisa, como se faz no resto do mundo! Basta de uma classe rica que defendia as universidades públicas enquanto eram os únicos a frequentá-las, e que passaram a atacar essas instituições quando seus filhos tiveram que dividi-las com os filhos dos pobres!

Basta de uma sociedade analfabeta que em vez de lutar para ter acesso à educação superior de qualidade prefere reproduzir discursos tacanhos que pregam a generalização da ignorância como política de Estado! Basta de uma cultura da ignorância, que despreza o conhecimento e se encanta com a possibilidade de comprar um diploma como se compra um chinelo!

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

CONTRA A “NOVA POLÍTICA”


Como professor de teoria política, de modo geral, tendo a preferir os clássicos. Não se trata de nenhuma simpatia maior pelo “antigo”, mas de uma admiração pela sua capacidade de perceber as coisas com amplitude e profundidade que é cada vez mais rara no campo do pensamento.

Quando se trata da “política real”, de sua dimensão empírica, minhas preferências não são muito diferentes. Não jogo no time dos que julgam algo como “bom” ou “melhor” simplesmente por que é “novo”. A condição de novidade nunca foi suficiente como atestado de qualidade de coisa alguma, e com as formas de “fazer política”, obviamente, não é diferente.

Pelo mundo afora de modo geral, e no Brasil em particular, está na moda (e moda é a encarnação da ideia de que o novo é bom só porque é novo) o discurso da “nova política”. Trata-se de um conceito vago, que significa muitas coisas, sempre ao gosto dos que o utilizam, em especial líderes populistas, hábeis em transformar as frustrações dos eleitores com os mais diversos temas em apoio político-eleitoral.

Assim, a “nova política” pode significar guinadas nacionalistas e xenófobas, como nos EUA, protecionismo antiglobalista, como na Inglaterra, ou combate a corrupção e ao socialismo, como no caso brasileiro. É especificamente ao nosso caso que quero me referir hoje.

Roberto Schwarz, em um belíssimo texto de 1972 (As ideias fora do lugar), descreveu de forma muito precisa a capacidade brasileira de distorcer ideias, modelos e teorias para que deem aparência de novidade a práticas e hábitos culturalmente arraigados, sem transformá-los de fato. Foi assim que produzimos intelectuais e políticos liberais ainda no século XIX, que conviviam tranquilamente com a escravidão. É assim que produzimos, hoje, liberais de meia tigela, que pregam o anarquismo na economia, mas são obcecados por controlar o que as pessoas assistem na televisão, ou como vivem suas vidas e seus relacionamentos afetivos.

Foi assim que o país elegeu, para a Presidência da República, alguém que se apresentava como “novo”, como diferente, como alguém “de fora do sistema”. O fato de ser deputado federal há 28 anos (sete mandatos), estar envolvido com o “sistema político” do país há três décadas, ter passado por meia dúzia de partidos, fazer da política uma atividade de família, eleger-se com apoio de milícias e utilizar os mandatos para dar emprego e apoio aos seus líderes... São apenas detalhes, claro, que nada diziam contra o discurso do “novo”.

Mas, afinal, o que há de “novo” na política brasileira? Vejamos algumas coisas que mudaram... A corrupção institucional, da promiscuidade com empreiteiras, foi substituída pela corrupção miúda, dos empregos fantasmas e das “rachadinhas” nos gabinetes parlamentares. O uso político e o aparelhamento das estruturas institucionais foram substituídos pelo sucateamento dos Conselhos Nacionais, pelo estrangulamento orçamentário dos órgãos de fiscalização, pelo esvaziamento das instâncias de participação democrática, pela perseguição às universidades e aos professores. O viés ideológico de atuação do BNDES no campo internacional foi substituído pela submissão grotesca e humilhante ao trumpismo e o que ele possui de pior. Os acordos pouco republicanos entre governo e empreiteiras foram substituídos pelo uso mafioso das estruturas do judiciário e do Ministério Público para fins político-eleitoreiros e projetos pessoais de poder. O descontrole das contas públicas decorrente, em parte, das políticas de combate a pobreza foi substituído por uma política aberta e escancarada de extermínio dos pobres, seja por sua eliminação física com atiradores de elite, seja por condená-los à morte pela miséria decorrente do abandono completo de Estado.

A lista poderia continuar, e tornaria o texto extenso demais para o espaço do blog. Mas acredito que a “ideia” já ficou clara. Se há algo de novo na “nova política”, não vai além do invólucro discursivo usado para embalar o que sempre houve de pior, de mais autoritário, antidemocrático e retrógrado na política e na sociedade brasileira.

De novo o atual governo não tem nada além da sanha autoritária, da miséria de ideias e projetos, da negação dos princípios básicos de civilidade e decência, do ódio ao diferente, do desprezo pelos direitos humanos, do desejo escancarado de transformar o país numa seita religiosa comandada por milícias.

A extrema esquerda sempre compreendeu a política como uma “classe” que precisa ser derrotada em nome do povo. A extrema direita a vê como uma casta que precisa ser destruída, eliminada, em nome da moral e dos bons costumes, em nome da família e dos “cidadãos de bem”. Ambas tendem, invariavelmente, a corroer as bases fundamentais da democracia. A primeira pela cegueira ideológica. A segunda pelo fanatismo moralista.

A extrema direita é moralista por definição. Seu uso dos preceitos morais sempre se dá por meio de um misto de messianismo e autoritarismo. A política e a democracia são vistas como espaço de corrupção dos valores morais, que precisam ser purificados por líderes imbuídos de inspiração e força divina. A democracia é o regime “dos outros”, e junto com os outros, precisa ser destruída para que um novo modelo seja edificado. Por isso a mistura entre política, religião e milícias é não apenas aceita, mas enaltecida.

É claro que a democracia é um regime que pode e precisa ser constantemente qualificado. É claro que a democracia brasileira está entre as que mais precisam avançar, em todos os sentidos. Mas isso não significa que qualquer mudança seja positiva, ou que não tenhamos que lutar por aquilo que ela possui de bom.

Se a opção de nova política é essa “que está aí”, não tenho qualquer dúvida de que prefiro a velha. Prefiro a política que respeita as instituições, que vê na oposição os representantes de ideias e projetos divergentes, não um inimigo que precisa ser exterminado. Prefiro a política que vê no governo eleito a oportunidade de implantar um projeto de nação, não um instrumento para perseguir quem pensa diferente e transformar o país num campo de batalha ideológico.

Prefiro a política que valoriza o debate, as negociações, as articulações em busca de acordos que viabilizem projetos, não a que usa as estruturas do Estado como instrumento de perseguição, de censura e de propagação do ódio. Prefiro a política que respeita a separação dos poderes e leva os líderes corruptos ao julgamento justo, não a que usa o Estado para dar abrigo a quadrilhas institucionalizadas, alimentadas por projetos de poder e sustentadas pelo moralismo e a miséria intelectual da população e a conivência da mídia.

Prefiro a velha política não porque ela seja imune a desvios, falhas, imperfeições, corrupção e problemas de toda ordem. Prefiro a velha política porque ela é pautada em uma institucionalidade que permite que esses problemas sejam identificados e corrigidos dentro do próprio regime. Prefiro a velha política porque, mesmo aos trancos e barrancos, ela é capaz de resistir ao messianismo moralista e à tentativa de conversão religiosa do Estado e de suas estruturas.

Enfim, prefiro a velha política porque, mesmo dando ao país governos incompetentes e medíocres, ela nos assegura a possibilidade de escolher outros nas eleições seguintes, porque não prega a destruição da democracia e de suas instituições fundamentais, nem busca o extermínio de quem propõe projetos alternativos.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

DA ESTUPIDEZ HUMANA


No último dia 27, João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo, publicou um belo texto sobre a estupidez humana. Ele parte de um clássico sobre o tema, do qual li resenhas quando estava na faculdade (ainda não há traduções no Brasil) e ao qual tenho voltado com frequência nos últimos tempos. Trata-se do italiano Carlo Cipolla e sua obra que, em uma tradução livre, traz como título: “Leis Básicas da Estupidez Humana”.

Considerando os tempos em que vivemos, o tema é importante demais para que o receio de ser repetitivo em alguns pontos (em relação ao texto de Coutinho) seja motivo para não tratar dele. É o que faço hoje.

No modelo de Cipolla, são três as leis básicas da estupidez. A primeira afirma que é recorrente, em todas as sociedades, que se subestime o número de estúpidos em circulação. Há muito mais estúpidos por aí do que costumamos imaginar. E a forma como nos espantamos ao encontrar um representante da espécie só mostra o quanto subestimamos seu contingente.

A “segunda lei de Cipolla” afirma também ser equívoco imaginarmos que a estupidez – ou sua diminuição – tenha alguma relação com a educação ou com a posição dos indivíduos na hierarquia social. Os estúpidos são um universal humano, portanto presentes em todos os segmentos, em todas as classes e níveis educacionais, em todos os setores, em proporções relativamente estáveis.

A estupidez não é algo que se combate ou se anula com educação formal. Diplomas e honrarias acadêmicas, por exemplo, em nada diminuem nem o número de estúpidos nem seus níveis de estupidez. Ao contrário, é comum que títulos e diplomas a acentuem significativamente, pois ainda pior que um estúpido é um estúpido com status.

A “terceira lei” é, acredito, a que mais nos ajuda a pensar os estranhos tempos em que vivemos. Ela apresenta uma tipologia segundo a qual os estúpidos podem ser classificados em quatro categorias gerais, definidas especialmente a partir do impacto que suas ações produzem sobre si mesmos e sobre os outros: os inaptos, os bandidos, os inteligentes e, claro, os estúpidos. Vamos a cada um deles.

Uma pessoa inapta se aproxima muito do que costumamos chamar de ingenuidade. Quando age, tende a beneficiar os outros, geralmente prejudicando a si mesma. Seja por desconhecimento ou de forma intencional, as pessoas desse grupo são, com frequência, manipuladas pelos outros, exploradas, com baixa autoestima e bastante influenciáveis. Também estão nesse grupo os altruístas e aqueles que dedicam suas vidas a causas humanitárias e ambientais, por exemplo.

O bandido é o modelo oposto do inapto. Quando age, prejudica os outros para beneficiar a si mesmo. O faz por meio da manipulação, da falsidade, do engano, da mentira. Nesse grupo estão desde enganadores e golpistas até psicopatas assassinos e sequestradores, passando por criminosos do colarinho branco e mentirosos do cotidiano.

O inteligente é aquele indivíduo que, ao agir, consegue produzir benefícios a todos ou, ao menos, a parte da sociedade. Estão nesse grupo as pessoas que possuem a rara capacidade de agir pensando no interesse público, essa coisa tão em baixa ultimamente. Essa habilidade decorre, fundamentalmente, da capacidade de agir racionalmente, de ponderar, de considerar as variáveis envolvidas e, então, tomar decisões visando o bem coletivo. Pois ao fazê-lo o indivíduo inteligente, como parte do público, também se beneficia (por isso é inteligente!). São, por exemplo, as habilidades que os gregos já consideravam fundamentais para o exercício da política, para a participação na polis.

Por fim, o que define o estúpido é a capacidade de, ao agir, prejudicar os outros e, ao mesmo tempo, não extrair daí nenhum benefício para si mesmo. Ao contrário, com frequência, entre os resultados de suas ações estão consequências negativas também para ele próprio. É a quase completa irracionalidade do estúpido que o torna uma ameaça, tanto para a sociedade quanto para si mesmo. É por isso que Cipolla vê no tipo estúpido a maior ameaça social, o indivíduo mais perigoso de todos. Inclusive mais perigoso que o bandido.

O iluminismo disseminou a noção – não totalmente verdadeira, segundo Cipolla – de que a racionalidade é uma característica universal. Costumamos pensar que não faz sentido alguém agir de modo que, ao fazê-lo, prejudicaria a si mesmo. Por isso é tão difícil compreendermos o comportamento (do) estúpido.

Podemos lamentar e nos consternar com o comportamento dos inaptos; admiramos os inteligentes e sua capacidade de agir racionalmente; e conseguimos até mesmo compreender, inclusive cientificamente, a cabeça do bandido. Mas os estúpidos fogem ao nosso entendimento. Eles resistem não apenas à nossa capacidade de empatia, mas também aos nossos esforços de compreensão.

O comportamento estúpido não segue nenhuma lógica, não possui qualquer elemento de racionalidade que permita analisá-lo com as ferramentas do pensamento científico ou filosófico. Ele nos espanta todos os dias, e nossa dificuldade de encontrar qualquer sentido naquilo que ele faz é permanente.

É claro que a tipologia de Cipolla não é a última palavra sobre a natureza humana, nem está imune a críticas e limitações. Muitos já a atacaram, justamente por ser uma tentativa de tipificar o comportamento humano, categorizando as pessoas. Contudo, não se trata de assumir o seu modelo como a verdade última sobre o mundo, mas como uma ferramenta de interpretação da sociedade em seus diversos aspectos.

Suas “leis” podem ser úteis para olharmos o cotidiano a nossa volta e as pessoas que fazem parte dele. Pode servir para entendermos, por exemplo, que aquele nosso colega de trabalho insuportável é um estúpido, não um bandido. Ou podem nos ajudar a compreender o contexto político em que nosso país está enredado.

Como diz Coutinho, se fizermos um exercício simples de “aplicação” do modelo de Cipolla ao nosso mundo político, rapidamente perceberemos que “políticos inteligentes são raros; políticos inaptos, daqueles que beneficiam os outros pelo sacrifício dos seus interesses, são mais raros ainda”. A grande maioria se divide entre a bandidagem e a estupidez. E, ainda citando Coutinho, é muito difícil a tarefa de decidir qual dos dois é pior. Afinal, podemos acreditar com alguma segurança que livrar o sistema político brasileiro dos bandidos e então entregá-lo aos estúpidos nos transformaria em um país melhor?

Um governo que não apenas se nega a usar a razão, como também a combate sistematicamente, será a solução para nossos males? Nos tornaremos uma potência mundial por sermos “guiados” por pessoas obcecadas em atacar seus “inimigos”, quase todos imaginários, que acabam por se tornar os maiores adversários de seu próprio governo?

Sobre isso, novamente preciso concordar com Coutinho, ao alertar que Cipolla talvez tenha se enganado em suas projeções. Para o historiador italiano, à medida que as sociedades se desenvolvem as pessoas inteligentes acabariam assumindo, progressivamente, o controle das instituições políticas. Com isso, além de a sociedade toda se beneficiar, também os estúpidos seriam controlados, assim como as mazelas coletivas que potencialmente poderiam provocar. Como diz o colunista da Folha:

Pobre Cipolla. Ele esqueceu a primeira lei do seu próprio tratado: nunca subestimar o número de estúpidos, nem mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. Se ele ainda estivesse vivo (morreu no ano 2000), era só olhar ao redor”.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CEGUEIRA SELETIVA

Uma característica profundamente associada ao fanatismo é a cegueira. Cegueira seletiva, no caso. Incapacidade – ou falta de vontade – de perceber em nós mesmos e naqueles que apoiamos as mesmas características e comportamentos criticados e denunciados nos outros.

No Brasil em que vivemos, dividido, movido pelo ódio e pelo fanatismo em sua versão mais tosca, a cegueira seletiva tem se tornado um problema de saúde pública. Obcecados por acusar os adversários de responsáveis por todos os males do mundo, as pessoas não se dão conta das contradições gritantes em que caem diariamente.

Tomemos apenas um exemplo, dos mais recentes. O Presidente do STF, Dias Toffoli, em período de recesso da Corte e atendendo a um pedido “avulso” da defesa do filho número 01 do Presidente da República, suspendeu todas as investigações em andamento iniciadas com base em informações fornecidas pelo COAF sem autorização judicial prévia. Não entro aqui no mérito da decisão, algo que muitos analistas, especialmente do campo jurídico, já fizeram bem. Minha inquietação decorre da total ausência de indignação dos apoiadores do atual governo à decisão.

Façamos um exercício rápido de imaginação. Pensemos que o pedido tivesse sido formulado não pelos advogados de Flávio Bolsonaro, mas pela defesa do ex-presidente Lula, ou de qualquer outro político ligado à esquerda implicado na Lava-Jato. Teríamos mobilizações virtuais e de rua pelo país afora, bonecos do presidente do STF sendo queimados, ameaças de linchamento, fake news espalhadas a todos os ventos. Mas, como o beneficiado direto da decisão foi o filho 01... Nada!

Onde estão os “cidadãos de bem” para fazer passeatas em nome do combate à corrupção e à “velha política”? Onde estão as hordas de devotos de Moro e Dallagnol que não tomam as ruas inflando bonecos e gritando palavras de ordem contra os corruptos e pedindo o fechamento do STF? Onde estão os enxames de intelectuais de direita “empoderados” pelo Face Book para pregar revolta e indignação contra as decisões do STF que beneficiam políticos lambuzados com a lama da corrupção, do abuso de poder, da associação entre política e milícia?

Nem mesmo os adeptos da teoria da conspiração foram capazes de cogitar, por exemplo, a possibilidade de Dias Toffoli ter esperado durante todo esse tempo justamente para beneficiar outros investigados da Lava-Jato, até que um pedido oriundo de alguém da direita bolsonarista aparecesse, a fim de, no atacado, beneficiar todo mundo sem parecer estar ajudando algum político da esquerda. Afinal, se essa decisão fosse tomada em função de um pedido de defensores de um petista, o mundo cairia. Então, tendo esperado um pedido feito por defensores de Flávio Bolsonaro, ele decide de forma geral, beneficiando aqueles que, na verdade, sempre esperou beneficiar. Maluquice? Provavelmente. Mas muito menos insana do que a maioria das teorias que bolsonaristas divulgam todos os dias.

Afinal, somos contra as práticas de corrupção em si, ou apenas contra a corrupção dos “adversários”? Será que, no fundo, todos temos nossos políticos de estimação, contra os quais somos incapazes de direcionar nossas críticas e exigências ético-morais?

Será que essa cegueira seletiva é contagiosa? Tem cura? É uma doença crônica? Vemos a internet cheia de gente corajosa gritando aos quatro ventos que a divulgação jornalística dos diálogos que mostram o submundo da Lava-Jato é criminosa, a despeito do que diz a Constituição Federal sobre a liberdade de imprensa. Onde estavam esses corajosos militantes quando a imprensa divulgou os diálogos entre Dilma (então presidente) e Lula, gravados ilegalmente e divulgados ilegalmente pelo então juiz Sérgio Moro? Onde estavam quando a imprensa divulgou os diálogos gravados ilegalmente por Joeslei Batista, entre ele e o então presidente Michel Temer?

Não, não estou dizendo que essas situações anteriores sejam motivo para criminalizar o trabalho da imprensa. Ao contrário, estou entre os que compreendem e defendem a distinção entre o processo de obtenção das informações (que em todos esses casos foi de forma criminosa) e sua divulgação pela imprensa, assegurada pela Constituição no bojo do princípio democrático de uma imprensa livre, e baseada na noção de interesse público, também presente em todas as situações.

O que frustra é ver a esmagadora maioria da população demonstrar ou incapacidade ou falta de vontade para perceber o que esses episódios têm em comum, o que obrigaria a tratá-los da mesma maneira. Porém, eis que a cegueira seletiva entra em cena, e então nossos filtros deixam de fora do rigor analítico nossos políticos de estimação.

Há muito de verdade no que tantos especialistas têm dito nos últimos tempos: que em uma democracia madura e consolidada as instituições se mostrariam mais sólidas e reagiriam, expurgando aventuras personalistas e messiânicas, seja no campo eleitoral, seja no campo jurídico. Na maioria das democracias pelo mundo afora, Moro e Dallagnol já estariam afastados dos cargos e respondendo por seus desvios de conduta.

Mas tenho a impressão de que se diz pouco sobre o papel da população nessa história. Instituições fortes são imprescindíveis para a sustentação de um regime democrático. Contudo, elas não são suficientes. Não há democracia no mundo que se consolide e que seja capaz de durar sem uma cultura democrática robusta que dê sustentação ao regime e às suas instituições. Embora nossas instituições democráticas sejam, de fato, frágeis, esse está longe de ser o único problema de nossa democracia. Nossa cultura democrática é ainda mais precária.

O Brasil não terá uma democracia forte enquanto seus eleitores agirem como hordas de animais guiados pelo fígado, que acreditam que o país só será melhor quando os adversários políticos forem todos linchados e destruídos. A única coisa que esse comportamento é capaz de alimentar são as sementes do autoritarismo, essa coisa horrorosa de que tantos acusam a Venezuela, mas que são incapazes de perceber no próprio quintal. 

quarta-feira, 3 de julho de 2019

ERA UMA VEZ NA AMÉRICA...


Proponho aos raros leitores um exercício. A partir de uma lista de características de seu governo e de sua situação política recente, que passaremos a descrever, tentemos deduzir de qual país estamos falando.

O presidente desse país é uma mistura de líder messiânico com caricatura de super-herói. Governa apostando na radicalização ideológica, em teorias conspiratórias, na deslegitimação dos partidos e das instituições políticas tradicionais e no ataque às “elites” do país.

Se apresenta como alguém que vem de “fora do sistema” e, portanto, imune ao seu “modo corrupto de funcionar”. No lugar de grandes reformas estruturais, prefere a implantação de políticas pontuais e de forte cunho ideológico, voltadas a segmentos sociais específicos e essencialmente populistas. O combate aos inimigos ideológicos, reais ou imaginários, é sempre mais importante do que implantar políticas voltadas aos grandes problemas do país.

O governo conta com forte apoio de lideranças militares, que além de contribuírem ocupando cargos de comando, emprestam ao presidente uma aura de moralidade e patriotismo com a qual reforça seu messianismo e, por consequência, sua popularidade.

A crítica ao governo é sistematicamente tomada como afronta à vontade do povo “manifesta nas urnas”. Jornalistas e intelectuais – com destaque para professores – são acusados de serem contra o governo e, portanto, contra o povo, de não serem produtivos e de tratarem de temas irrelevantes para a sociedade. Políticos de oposição são associados a organizações internacionais voltadas ao domínio da nação que buscam exploração de seus recursos naturais.

Incapaz de garantir a segurança da população, o governo prega que as pessoas devam se levantar e lutar, pela própria segurança e pelo governo, sempre apresentado como vítima de conspirações e ataques, da oposição e de organismos internacionais mal intencionados. Se para isso for necessário que a população se arme, então deve fazê-lo, sob o abrigo da lei, mesmo que lhe falte emprego e dinheiro para comprar pão.

O Poder Legislativo é frequentemente desqualificado, cooptado e acusado de pensar mais em si mesmo do que no povo. O Judiciário, em sua maior parte, atua de forma enviesada em favor do governo, seja fazendo vistas grossas aos crimes e desmandos que ele comete, seja atropelando a lei e os processos para criminalizar e condenar opositores.

A Suprema Corte do país é progressivamente acuada, pelo governo e pela opinião pública por ele manipulada com a ajuda de apoiadores influentes. Seus integrantes são acusados de conspirarem em favor dos “corruptos”, e tentativas de recomposição de seus quadros em favor de nomes ligados ao governo são cada vez mais frequentes.

Acredito que já é suficiente. A essa altura já é possível que cada leitor tenha imaginado de quem falamos. Os que imaginaram Nicolás Maduro e seu desastroso governo na Venezuela acertaram. Como também acertaram aqueles que deduziram estarmos falando de Jair Bolsonaro e sua comédia de erros em terras tupiniquins.

Os “comunistas” por aqui, os “americanos” por lá. O petróleo deles, a nossa Amazônia. A direita corrupta na Venezuela, a esquerda corrupta no Brasil. A CIA no vizinho do Norte, as ONGs interessadas nos nossos recursos naturais... Os elementos mudam, os sinais se repetem. O conteúdo é diferente, a forma é a mesma.

Não é por acaso que Bolsonaro e seu governo odeiam tanto o PT, da mesma forma que o PT odeia Bolsonaro e seu governo. Eles são os dois lados da mesma moeda, são os opostos que se tocam e se confundem no círculo político da radicalização ideológica.

Já escrevi neste blog que para compreendermos o governo Bolsonaro não bastam as teorias políticas. Precisamos de Freud tanto quanto de Maquiavel. O ódio do presidente messias ao PT é, acima de tudo, a externalização daquilo que o define, das suas características mais fundamentais. O ódio do PT a Bolsonaro é a projeção de seu próprio modo de fazer política, identificado no governo do qual é oposição.

Bolsonaro e o PT não são extremos distantes num continuum imaginário de formas de fazer política. São extremos que se tocam em um arco que se fecha em si mesmo. E como a incapacidade de fazer autocrítica é mais uma das características que compartilham, há grande probabilidade de que passem quatro anos atacando um ao outro, a despeito dos necessários debates sobre os grandes problemas do país.

O problema é que, como acontece em todas as guerras, é na cabeça do povo que caem as bombas.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

SOCIEDADE, TECNOLOGIA E PARADOXOS


Uma das ferramentas mais importantes para a eleição de Jair Bolsonaro foi o uso intenso, sistemático e “profissional” das redes sociais. E esse uso, inclusive financiado por grandes empresários, esteve muito associado à divulgação de mentiras ou, como está na moda hoje em dia, fake news. Essas coisas nas quais as pessoas parecem gostar, cada vez mais, de acreditar.

Não sou do grupo que tem ódio às ferramentas. Acredito que os instrumentos não são os culpados quando as pessoas fazem uso inadequado deles. Não acho que a internet e as redes sociais criaram hordas de imbecis e psicopatas de sofá. Eles sempre existiram. O que as redes sociais fizeram foi dar-lhes voz, poder e visibilidade.

Em sociologia utilizamos o termo “paradoxos modernos” como instrumento analítico para pensar sobre essas contradições entre as ferramentas produzidas pela modernidade (como projeto histórico) e o uso que as pessoas fazem delas. Por exemplo, quando eleitores brasileiros se utilizam da urna eletrônica (tecnologia aplicada à democracia) para votar em um candidato cujo discurso e prática são condizentes com a política do século XIX, temos aí um “paradoxo” entre a ferramenta disponível e nossa capacidade de extrair dela o que de melhor ela pode dar em termos de “modernização”, da sociedade e da política.

Ou quando uma mãe utiliza um aplicativo de celular para localizar o endereço de uma benzedeira para seu filho que está com dor de dente. Temos mais um caso de sobreposição entre o instrumento (celular, GPS) que simboliza o auge do progresso tecnológico, e uma prática social que reflete crença em magia e poderes sobrenaturais, plenamente condizentes com a Idade Média.

Em essência, é o mesmo que ocorre quando um sujeito, do alto de sua poltrona, utiliza um smartfone conectado às redes sociais (auge do desenvolvimento tecnológico) para destilar ódio e agressividade a quem tem opiniões diferentes das suas com tamanha selvageria que daria inveja a qualquer sociedade pré-histórica.

E os “paradoxos” se multiplicam. Somos uma sociedade que paralisa porque tem excesso de meios de locomoção; uma sociedade que caminha a passos largos para a estupidez e a ignorância, apesar de possuir, como nunca antes, meios de acesso ao conhecimento; uma sociedade que nunca soube tanto sobre o ser humano e sua diversidade, mas que vem sendo tomada pela intolerância e pelo ódio; uma sociedade que planeja a ocupação de outros planetas para os próximos 200 anos, mas joga lixo pela janela do carro ajudando a destruir o planeta onde vive hoje; uma sociedade que discute o direito de robôs com inteligência artificial, mas idolatra líderes que pregam a violência e o desrespeito às leis e aos direitos do colega de trabalho que vive com valores diferentes.

Dito isso, gosto de pensar que ainda é possível imaginarmos um mundo onde essas mesmas ferramentas sejam utilizadas de forma mais responsável, mais crítica, mais “refletida”. E aqui, inevitavelmente, passamos pelo campo da educação.

Não basta que as pessoas tenham acesso às ferramentas produzidas pelo avanço da sociedade e da ciência. É preciso que avance também nossa capacidade de pensar sobre esses avanços, de refletir criticamente sobre sua produção e seus usos, como condição para extrairmos deles o que de melhor podem dar à sociedade, ao planeta e às nossas vidas.

Ora, se redes sociais podem ser utilizadas para espalhar mentiras e mudar os rumos de uma eleição, por que não poderiam ser usadas de forma mais digna, para disseminar informações corretas, para refletir mais fielmente a realidade e ajudar, de fato, as pessoas a tomarem decisões autônomas e responsáveis?

Por que as redes sociais não podem, por exemplo, servir de instrumento para divulgar a toda a sociedade o que realmente é feito nas universidades? Por que as pessoas não podem conhecer, através dessas redes, os trabalhos de pesquisa, os projetos que são desenvolvidos todos os dias por professores e estudantes? Por que grupos de aplicativos não são utilizados para divulgar links de publicações científicas com resultados de pesquisas e inovações tecnológicas?

Bem, em parte isso não acontece pelo simples fato de que as pessoas não querem conhecer essas coisas. Porque ler uma publicação científica demanda capacidade mínima de análise e compreensão. E, também, porque requer que dediquemos algum tempo à leitura. E hoje em dias as pessoas “não têm tempo”.

Afinal, se dedicarmos uma hora de nosso dia para a leitura de um artigo científico, quantas fofocas deixaremos de acessar no Facebook? Quantas notícias com apenas duas frases deixaremos de ler e “nos informar”? Quantas imagens (falsas, claro, mas isso não importa) de balbúrdia e de gente pelada deixaremos de ver? Quantas novidades sobre a infantilidade das celebridades deixaremos de acessar? Quantas fotos do Neymar deixaremos de “curtir”?

Sob vários aspectos as redes sociais são a antítese do pensamento crítico, da informação e do conhecimento. Por que são avessas à reflexão, multiplicam a desinformação e reforçam justamente as opiniões de senso comum. Nas guerras das redes sociais não importa o que você sabe, importa apenas o que você “acha”. Não importa o que você conhece ou o argumento que utiliza para defender uma posição; basta ter uma opinião e alguns palavrões para xingar quem pensa diferente.

A mediocridade sempre existiu. Mas as redes sociais lhes deram o status de “conhecimento” e de “verdade”, projetando os medíocres e dando-lhes poder que jamais teriam de outra forma.

Em referência ao filme de divulgação do nazismo “O triunfo da vontade”, muitos autores contemporâneos têm se referido ao tempo em que vivemos como o “o triunfo da mediocridade”. Acho a expressão muitíssimo apropriada, além de autoexplicativa.