quarta-feira, 6 de novembro de 2019

PAULO GUEDES E A FÉ NO LIBERALISMO DE MENTIRINHA


Paulo Guedes já emplacou a reforma da previdência. Agora encaminha a administrativa. A tributária, dizem, será a próxima. Por que ela ficará por último quando todos os modelos teóricos e estudos empíricos indicam que é, de longe, a mais importante? Bom, essa é a pergunta de um milhão de dólares. Voltaremos a ela...

É um caso a ser estudado a relação da mídia brasileira (e da elite do país) com o governo Bolsonaro. Não passam um dia sem ridicularizar – e com razão – o presidente da república, aproveitando o IBOPE do palhaço-chefe do circo em que se converteu a capital nacional.

Por outro lado, bajulam o ministro da economia, comemoram suas “reformas”, acreditam em seu liberalismo tosco e ajudam a vender seu discurso para a população. Como se Paulo Guedes fosse uma ilha de sanidade e visão esclarecida dentro de um governo paranoico, desorientado e sem a mínima compreensão dos problemas do país e de como resolvê-los.

Ora, será mesmo possível separá-los assim? Será mesmo que o chicago boy é esse poço de esclarecimento liberal no buraco sem fundo do governo Bolsonaro?

Paulo Guedes tinha várias opções de candidatos adeptos do liberalismo dentro do espectro republicano. Amoedo, Álvaro Dias, Alkmin e até mesmo Marina Silva seriam opções republicanas para a implantação de programas liberais. Mas a escolha foi por Bolsonaro...

Afinal, o que a associação com Bolsonaro diz sobre a natureza do liberalismo que Guedes propõe? Ou seria só uma coincidência o fato de seu modelo de país liberal ser justamente o Chile de Pinochet? Por que os telejornais citam as “reformas chilenas dos anos 70 e 80” para se referir ao modelo proposto por Guedes, mas sempre esquecem que os anos 70 e 80 do século XX foram os anos mais sangrentos da mais violenta e mais corrupta das ditaduras militares no continente latino-americano? Por que não buscam associações entre a “experiência chilena” do final do século passado e a convulsão que assola o país hoje? Ou alguém ainda acredita que elas não estão relacionadas?

Já escrevi em outros textos deste blog (especialmente em “Liberais conservadores?”) que o governo Bolsonaro (aqui incluso seu ministro da economia) pode ser chamado de muitas coisas, mas “liberal” certamente não está entre elas.

Ora, por que um economista liberal se associaria a um governo autoritário, moralista, machista, xenófobo, propagador do anti-intelectualismo e do ataque às instituições? Bem, talvez seja porque o liberalismo que ele defende precise de autoritarismo, de negação da democracia e de violência para ser implantado. Ou porque se trata de um liberalismo tão tacanho que não teria qualquer chance de prosperar em um governo minimamente comprometido com os preceitos republicanos e os procedimentos democráticos de construção de políticas públicas.

A reforma da previdência foi construída a partir de uma visão da pobreza e dos pobres como um peso, como um carma político, não como uma consequência do modelo de sociedade baseado na exclusão e na concentração de riqueza.

O bolsonarismo é adepto da tese de que os pobres devem ser eliminados. Por algum tempo isso foi disfarçado. Não é mais. Internamente as divergências são apenas em relação ao método de eliminação. O presidente e seus filhos, por exemplo, defendem a eliminação direta dos pobres, seja pela polícia, seja pelos “cidadãos de bem” armados a prontos para “se defender”. A ala do ministro da economia prevê sua eliminação pela própria pobreza, levada ao ponto de impossibilitar a sobrevivência.

(Não estou discutindo a necessidade de uma reforma previdenciária. Ela era evidente. Mas a mim não resta qualquer dúvida de que a reforma aprovada era a pior possível para a parcela mais pobre da população).

A reforma administrativa complementa o serviço. Depois de demonizar tudo o que é público, com ajuda da grande mídia e seus “analistas” de meia tigela, está pavimentado o caminho para o sucateamento e a privatização. Depois de popularizar a tese de que tudo se resume a equilibrar as contas públicas, ninguém reage à proposição de acabar com a obrigatoriedade de investimentos mínimos em saúde e educação. Depois de convencer a sociedade de que tudo o que existe de ruim no mundo é culpa dos servidores públicos, está legitimada a empreitada para caçá-los.

No último dia 05, enquanto apresentava seu pacote de medidas da reforma administrativa, Paulo Guedes explicava por que quer extinguir a estabilidade dos servidores públicos, especialmente daqueles que são filiados a partidos políticos: “Se é filiado a partido é militante. Eu não vou dar estabilidade para militante”.

A psicanálise ensina que a linguagem costuma nos trair, revelando o que o inconsciente realmente alimenta.

Ora, senhor ministro, a estabilidade é uma prerrogativa constitucional, não uma dádiva que o senhor dá para quem foi aprovado em concurso e simpatiza com sua ideologia. Estabilidade é uma prerrogativa do cargo, não um presente que o senhor decide quem merece e quem não merece, quem vai receber e quem não vai.

Mais que isso: a estabilidade é um preceito legal criado justamente para impedir que governos paranoicos como o que o senhor integra se utilizem da condição de autoridade política para perseguir servidores por motivos ideológicos – exatamente o que o senhor propõe fazer! Ou seja, a estabilidade não é uma garantia de emprego eterno, haja vista que existem, sim, e muitas, possibilidades de demissão de servidor público. A estabilidade existe justamente para preservar servidores de governos autoritários, evitando que utilizem o poder de governo para “punir” quem pensa diferente. Os motivos que o nobre ministro apresenta para “acabar com a estabilidade” são justamente os que a tornaram um preceito constitucional!

Mas, é claro, os grandes jornais e os grandes jornalistas do Brasil não deram atenção a essa parte do discurso do ministro. Importaram-se apenas com os números. Números que, tendo saído das cabeças e planilhas do ministério da economia, apontam maior chance de equilíbrio das contas públicas nos próximos anos. Mas, como nada é garantido, nem mesmo para Guedes, eis que ele propõe uma medida de segurança, uma garantia caso o plano não dê certo: reduzir a jornada de trabalho dos servidores, com proporcional redução dos salários.

Apenas mais um “sacrificiozinho”, segundo o nobre ministro. Afinal, até agora os servidores só foram atingidos por coisa pouca:
- Sua alíquota de contribuição previdenciária foi tornada progressiva, chegando a 22%;
- Contribuirão mais e durante mais tempo, mas ainda assim não poderão se aposentar com salário integral;
- Terão que continuar contribuindo depois de aposentados;
- A reforma prevê o bloqueio de todos os sistemas de promoção e progressão, impedindo-os de ascender na carreira.
- Terão sua jornada de trabalho e seus salários reduzidos, mas o volume de trabalho, obviamente, não.
- Os cortes orçamentários deteriorarão ainda mais as já precárias condições de trabalho, piorando os resultados, o que alimentará o ódio que a população é instigada a desenvolver contra o serviço público.

Diante de tudo isso, afinal, o que é ter a estabilidade “negada” pelo ministro?

Mas, e a reforma tributária? Ora, o ministro liberal disse que “essa fica para depois”, e deve se limitar a “unificação de tributos” para “simplificar o sistema de impostos no país”.

Pois é. Unificar impostos é, de fato, tudo o que precisamos. Afinal de contas, que importância tem o fato de nosso sistema tributário:
- Ser um dos mais injustos do planeta segundo vários organismos internacionais, como a ONU, já que é bancado pelos mais pobres?
- Ser baseado no consumo e não renda, o que faz com que a maior carga de tributos esteja vinculada à compra de produtos básicos e não de artigos de luxo?
- Adotar o modelo de progressão invertida, fazendo com que, proporcionalmente, os tributos diminuam à medida que a renda cresce?
- Não incidir sobre o mercado financeiro e a especulação, tornando o país um paraíso para banqueiros (enquanto o país afunda, o Itaú anuncia, na semana passada, novo recorde de lucros no terceiro trimestre do ano!)?

Curioso. Um “liberal radical” que considera a estabilidade do servidor público uma grande ameaça ao crescimento do país, mas vê no pior sistema tributário do planeta um probleminha secundário, que não tem pressa para ser resolvido, e que se pode ajustar com uma simples “unificação de impostos”.

Continuo acreditando que um governo realmente liberal (no sentido político e clássico do conceito) faria bem ao Brasil. Só espero que o país sobreviva aos liberais de mentirinha que sequer ficam constrangidos ao destruí-lo em velocidade nunca antes vista, e que depois deles ainda haja um Brasil para escolher, democraticamente, uma opção liberal no futuro.

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