Paulo Guedes já
emplacou a reforma da previdência. Agora encaminha a administrativa. A
tributária, dizem, será a próxima. Por que ela ficará por último quando todos
os modelos teóricos e estudos empíricos indicam que é, de longe, a mais
importante? Bom, essa é a pergunta de um milhão de dólares. Voltaremos a ela...
É um caso a ser
estudado a relação da mídia brasileira (e da elite do país) com o governo
Bolsonaro. Não passam um dia sem ridicularizar – e com razão – o presidente da
república, aproveitando o IBOPE do palhaço-chefe do circo em que se converteu a
capital nacional.
Por outro lado,
bajulam o ministro da economia, comemoram suas “reformas”, acreditam em seu
liberalismo tosco e ajudam a vender seu discurso para a população. Como se
Paulo Guedes fosse uma ilha de sanidade e visão esclarecida dentro de um
governo paranoico, desorientado e sem a mínima compreensão dos problemas do
país e de como resolvê-los.
Ora, será mesmo
possível separá-los assim? Será mesmo que o chicago
boy é esse poço de esclarecimento liberal no buraco sem fundo do governo
Bolsonaro?
Paulo Guedes tinha
várias opções de candidatos adeptos do liberalismo dentro do espectro
republicano. Amoedo, Álvaro Dias, Alkmin e até mesmo Marina Silva seriam opções
republicanas para a implantação de programas liberais. Mas a escolha foi por
Bolsonaro...
Afinal, o que a
associação com Bolsonaro diz sobre a natureza do liberalismo que Guedes propõe?
Ou seria só uma coincidência o fato de seu modelo de país liberal ser justamente
o Chile de Pinochet? Por que os telejornais citam as “reformas chilenas dos
anos 70 e 80” para se referir ao modelo proposto por Guedes, mas sempre
esquecem que os anos 70 e 80 do século XX foram os anos mais sangrentos da mais
violenta e mais corrupta das ditaduras militares no continente latino-americano?
Por que não buscam associações entre a “experiência chilena” do final do século
passado e a convulsão que assola o país hoje? Ou alguém ainda acredita que elas
não estão relacionadas?
Já escrevi em outros
textos deste blog (especialmente em “Liberais
conservadores?”) que o governo Bolsonaro (aqui incluso seu ministro da
economia) pode ser chamado de muitas coisas, mas “liberal” certamente não está
entre elas.
Ora, por que um
economista liberal se associaria a um governo autoritário, moralista, machista,
xenófobo, propagador do anti-intelectualismo e do ataque às instituições? Bem,
talvez seja porque o liberalismo que ele defende precise de autoritarismo, de
negação da democracia e de violência para ser implantado. Ou porque se trata de
um liberalismo tão tacanho que não teria qualquer chance de prosperar em um
governo minimamente comprometido com os preceitos republicanos e os
procedimentos democráticos de construção de políticas públicas.
A reforma da
previdência foi construída a partir de uma visão da pobreza e dos pobres como
um peso, como um carma político, não como uma consequência do modelo de
sociedade baseado na exclusão e na concentração de riqueza.
O bolsonarismo é
adepto da tese de que os pobres devem ser eliminados. Por algum tempo isso foi
disfarçado. Não é mais. Internamente as divergências são apenas em relação ao
método de eliminação. O presidente e seus filhos, por exemplo, defendem a
eliminação direta dos pobres, seja pela polícia, seja pelos “cidadãos de bem”
armados a prontos para “se defender”. A ala do ministro da economia prevê sua
eliminação pela própria pobreza, levada ao ponto de impossibilitar a
sobrevivência.
(Não estou discutindo
a necessidade de uma reforma previdenciária. Ela era evidente. Mas a mim não resta
qualquer dúvida de que a reforma aprovada era a pior possível para a parcela
mais pobre da população).
A reforma
administrativa complementa o serviço. Depois de demonizar tudo o que é público,
com ajuda da grande mídia e seus “analistas” de meia tigela, está pavimentado o
caminho para o sucateamento e a privatização. Depois de popularizar a tese de
que tudo se resume a equilibrar as contas públicas, ninguém reage à proposição
de acabar com a obrigatoriedade de investimentos mínimos em saúde e educação. Depois
de convencer a sociedade de que tudo o que existe de ruim no mundo é culpa dos
servidores públicos, está legitimada a empreitada para caçá-los.
No último dia 05, enquanto
apresentava seu pacote de medidas da reforma administrativa, Paulo Guedes
explicava por que quer extinguir a estabilidade dos servidores públicos,
especialmente daqueles que são filiados a partidos políticos: “Se é filiado a partido é militante. Eu não
vou dar estabilidade para militante”.
A psicanálise ensina
que a linguagem costuma nos trair, revelando o que o inconsciente realmente alimenta.
Ora, senhor ministro,
a estabilidade é uma prerrogativa constitucional, não uma dádiva que o senhor
dá para quem foi aprovado em concurso e simpatiza com sua ideologia.
Estabilidade é uma prerrogativa do cargo, não um presente que o senhor decide
quem merece e quem não merece, quem vai receber e quem não vai.
Mais que isso: a
estabilidade é um preceito legal criado justamente para impedir que governos paranoicos
como o que o senhor integra se utilizem da condição de autoridade política para
perseguir servidores por motivos ideológicos – exatamente o que o senhor propõe
fazer! Ou seja, a estabilidade não é uma garantia de emprego eterno, haja vista
que existem, sim, e muitas, possibilidades de demissão de servidor público. A
estabilidade existe justamente para preservar servidores de governos
autoritários, evitando que utilizem o poder de governo para “punir” quem pensa
diferente. Os motivos que o nobre ministro apresenta para “acabar com a estabilidade”
são justamente os que a tornaram um preceito constitucional!
Mas, é claro, os
grandes jornais e os grandes jornalistas do Brasil não deram atenção a essa
parte do discurso do ministro. Importaram-se apenas com os números. Números
que, tendo saído das cabeças e planilhas do ministério da economia, apontam
maior chance de equilíbrio das contas públicas nos próximos anos. Mas, como
nada é garantido, nem mesmo para Guedes, eis que ele propõe uma medida de
segurança, uma garantia caso o plano não dê certo: reduzir a jornada de
trabalho dos servidores, com proporcional redução dos salários.
Apenas mais um “sacrificiozinho”,
segundo o nobre ministro. Afinal, até agora os servidores só foram atingidos
por coisa pouca:
- Sua alíquota de
contribuição previdenciária foi tornada progressiva, chegando a 22%;
- Contribuirão mais e
durante mais tempo, mas ainda assim não poderão se aposentar com salário
integral;
- Terão que continuar
contribuindo depois de aposentados;
- A reforma prevê o
bloqueio de todos os sistemas de promoção e progressão, impedindo-os de
ascender na carreira.
- Terão sua jornada
de trabalho e seus salários reduzidos, mas o volume de trabalho, obviamente,
não.
- Os cortes
orçamentários deteriorarão ainda mais as já precárias condições de trabalho, piorando
os resultados, o que alimentará o ódio que a população é instigada a
desenvolver contra o serviço público.
Diante de tudo isso,
afinal, o que é ter a estabilidade “negada” pelo ministro?
Mas, e a reforma
tributária? Ora, o ministro liberal disse que “essa fica para depois”, e deve
se limitar a “unificação de tributos” para “simplificar o sistema de impostos
no país”.
Pois é. Unificar
impostos é, de fato, tudo o que precisamos. Afinal de contas, que importância tem
o fato de nosso sistema tributário:
- Ser um dos mais
injustos do planeta segundo vários organismos internacionais, como a ONU, já
que é bancado pelos mais pobres?
- Ser baseado no
consumo e não renda, o que faz com que a maior carga de tributos esteja
vinculada à compra de produtos básicos e não de artigos de luxo?
- Adotar o modelo de
progressão invertida, fazendo com que, proporcionalmente, os tributos diminuam
à medida que a renda cresce?
- Não incidir sobre o
mercado financeiro e a especulação, tornando o país um paraíso para banqueiros
(enquanto o país afunda, o Itaú anuncia, na semana passada, novo recorde de
lucros no terceiro trimestre do ano!)?
Curioso. Um “liberal radical”
que considera a estabilidade do servidor público uma grande ameaça ao
crescimento do país, mas vê no pior sistema tributário do planeta um
probleminha secundário, que não tem pressa para ser resolvido, e que se pode
ajustar com uma simples “unificação de impostos”.
Continuo acreditando
que um governo realmente liberal (no sentido político e clássico do conceito)
faria bem ao Brasil. Só espero que o país sobreviva aos liberais de mentirinha que
sequer ficam constrangidos ao destruí-lo em velocidade nunca antes vista, e que
depois deles ainda haja um Brasil para escolher, democraticamente, uma opção
liberal no futuro.
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