sexta-feira, 29 de novembro de 2019

VIVA A POBREZA! MORTE AOS POBRES!


Um dos debates mais instigantes para os pesquisadores que, como eu, se dedicam à investigação das relações entre cultura e comportamento sociopolítico, é aquele em torno das “heranças culturais”. Trata-se de tentar compreender como o passado comum e seus mitos, as tradições compartilhadas, o imaginário religioso, o padrão de desenvolvimento institucional e tantos outros fatores estruturais ajudam a configurar os enquadramentos por meios dos quais um determinado grupo percebe o mundo, a si mesmo e aos outros, e como age em função disso.

É esse tipo de abordagem que está na base, por exemplo, das tentativas de compreender o racismo arraigado na cultura brasileira tomando, como um de seus elementos constitutivos mais importantes, nosso modelo de colonização e nossa herança escravocrata.

Os efeitos da escravidão no imaginário coletivo têm variações significativas entre as sociedades que a praticaram. Roberto DaMatta, por exemplo, mostrou como o racismo se manifesta de maneira distinta nos Estados Unidos e no Brasil, embora seja elemento marcante e definidor das relações sociais nos dois países.

Hoje quero tratar da forma como nossa herança escravocrata continua a influenciar a maneira como o brasileiro médio percebe não apenas o negro especificamente, mas o pobre como categoria social ainda mais ampla. Claro, não entro aqui no debate sobre a sobreposição entre cor e condição econômica no Brasil, já demonstrada e plenamente comprovada como um fato estruturante de nossa desigualdade. A esmagadora maioria dos pobres em nosso país é de negros, e a grande maioria dos negros é pobre. Contudo, para as reflexões que seguem, tomarei a pobreza em seu sentido econômico como categoria de análise.

A relação entre senhores e escravos, no Brasil, não era apenas uma relação entre pessoas em condições econômicas distintas. Ela sempre foi percebida também como uma relação entre diferentes níveis de moralidade. Os escravos eram vistos como pessoas inferiores em todos os sentidos, o que inclui a noção de caráter. Eram seres degenerados, inclusive frequentemente desumanizados.

Essa característica, que remete ao período da escravidão, não desapareceu com o fim daquele regime. Ao contrário, ela se consolidou e se arraigou ao imaginário da população. No Brasil, pobres não são apenas pessoas sem dinheiro; são pessoas consideradas inferiores, ignorantes, incompetentes, não confiáveis, moralmente degeneradas.

Como fenômeno social, a pobreza em nosso país é um excelente fator de marketing e aceitação. Ela é objeto de curiosidade, de observação. Novelas, filmes, peças de humor, documentários... Sempre tiveram na pobreza e na miséria econômica uma fonte de inspiração e garantia de sucesso. Mas isso nunca foi capaz de modificar o desprezo profundo que principalmente as classes média e alta sempre nutriram pelo pobre como ser humano. A elite brasileira nutre certo fascínio pela pobreza, mas tem ojeriza, desprezo e nojo pelos pobres, de quem se considera moralmente superior.

É assim que, por exemplo, vestir-se de mendigo maltrapilho é garantia de sucesso no carnaval, como se isso satisfizesse uma curiosidade profunda e nutrisse um desejo inconsciente de sentir, por algumas horas, como é viver aquele “estilo de vida”. Mas em todos os outros dias do ano o mendigo e os miseráveis são objeto de xingamento, vistos como sujeira nas cidades, tratados como lixo, tornados invisíveis e desprezados sistematicamente.

E o mesmo profissional liberal que se veste de mendigo no carnaval, que vai à igreja e reproduz um discurso religioso de valorização da pobreza como fator de dignificação, é o que defende o extermínio de negros, de moradores da favela, de “marginais”. Afinal a “marginalidade”, em nosso imaginário, sempre esteve associada aos pobres, aos moradores da periferia. E a “marginalidade”, assim como a pobreza que lhe está associada, não se combate com políticas de assistência e de inclusão; se combate com políticas de extermínio.

Mas, voltemos à visão dos pobres como seres inferiores. Ela é tão forte em nossa cultura que chega a se propagar até mesmo entre os pobres. Os níveis de pobreza, como sabemos, são muitos, o que assegura que, independentemente da condição em que um cidadão se encontra, sempre é grande a probabilidade de que alguém esteja ainda pior. Por isso é comum vermos pobres com nojo de pobre, pessoas que por estarem, mesmo que temporariamente, em situação econômica ligeiramente mais confortável que o vizinho, já se acham melhores que ele e no direito de reprimi-lo moralmente por sua condição.

Basta encontrar alguém “mais pobre” do que ele que o brasileiro já se vê na condição de superior e se sente à vontade para discursar sobre os maus hábitos dos “pobres”, sobre sua falta de iniciativa e de higiene, sobre seus hábitos reprodutivos e número de filhos, sobre sua falta de “disposição” para trabalhar...

Por isso damos tanta importância a coisas que simbolizam nossa suposta “condição melhor”. Afinal, afirmar nossa condição econômica passa a ser uma forma de indicar ao mundo a natureza de nossa fibra moral. O sujeito ganha 50 reais de aumento no salário e a primeira coisa que faz é contratar uma faxineira para fazer os trabalhos considerados degradantes, como esfregar o chão e limpar o banheiro. Afinal, trabalhos degradantes são coisa de pobre, pois pobre é moralmente degradado. Dados da OMC, por exemplo, mostram que mesmo estando longe de ser um país rico, o Brasil é a nação do planeta com o maior número de faxineiras e empregadas domésticas...

E assim construímos todo um modelo mental, um imaginário coletivo de significação da condição econômica dos outros a partir de referências morais. Afinal, como somos um país onde as pessoas são livres, a pobreza só pode ser resultado de degeneração moral, de alguma falha no caráter. Assim como a riqueza é sempre vista com inveja e admiração, nunca com desconfiança. Afinal, quem rouba são apenas os pobres, que praticam crimes porque gostam ou porque não são “gente de bem”. Além dos políticos, é claro.

Empresários, médicos, advogados são gente de estirpe superior. Jamais sonegam impostos, não tiram proveito das pessoas, não enganam ninguém, nunca faltam com a ética, são seres humanos exemplares, não tratam seus empregados com desrespeito e preconceito, não se acham superiores. Quando o médico, por exemplo, dá uma lição de moral sobre os hábitos alimentares a um pobre que o consulta por causa de uma gripe forte, ele só está dando uma abordagem integral ao seu estado de saúde, jamais se considerando na condição de ser superior que tem o direito de dizer aos outros como devem viver suas vidas.

Essa marca cultural brasileira sempre permeou nossas relações sociais, sempre esteve na base dos arranjos que organizaram nossa vida política, nosso mundo do trabalho. Não é algo novo. O que temos de novo é o fato de que, ao contrário de outros tempos, esse elemento cultural deixou de ser algo velado, disfarçado. Hoje é algo que muitas pessoas fazem questão de assumir, de demonstrar, de orgulhosamente espalhar pelas redes sociais.

Talvez seja porque vivemos tempos em que o próprio governo toma a noção de que pobre é sinônimo de problema e causa dos males do país como parâmetro para governar. Afinal, como brilhantemente diagnosticou nosso ministro da economia, nem lidar com dinheiro os pobres sabem. "Basta ganhar um pouco de dinheiro que já saem gastando tudo", ao contrário dos ricos, seres superiores e mais conscientes, que "se preocupam em investir e capitalizar".

Essa ideologia é muito mais ampla. Sistema de previdência para amparar os pobres? Coisa de comunista que quer falir o Estado. Leis trabalhistas para proteger os trabalhadores pobres? Empecilho ao desenvolvimento econômico que os empresários brasileiros, esses seres angelicais e de moral elevadíssima, só não conseguem efetivar porque os direitos dos seus funcionários atrapalham. Educação pública? Desperdício de dinheiro, pois a lei diz que somos todos iguais e, portanto, todos devem cuidar da sua vida, empreender e ganhar dinheiro sem ajuda do governo. Políticas de combate a pobreza e às desigualdades? Absurdo comunista que usa os impostos dos “cidadãos de bem” para ajudar vagabundo preguiçoso.

Segundo essas visões de mundo, o Brasil só vai melhorar mesmo é quando acabar de vez com esse negócio de direitos, de proteção social, de combate à pobreza com políticas públicas, de educação gratuita, de proteção dos vulneráveis. Chega desse negócio de cobrar impostos dos “cidadãos de bem” para financiar políticas de combate à desigualdade. O dinheiro dos impostos deve ser usado para comprar mais armas e munição, e “mandar bala na bandidagem”. De preferência, “bem na cabecinha”.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

PAULO GUEDES E A FÉ NO LIBERALISMO DE MENTIRINHA


Paulo Guedes já emplacou a reforma da previdência. Agora encaminha a administrativa. A tributária, dizem, será a próxima. Por que ela ficará por último quando todos os modelos teóricos e estudos empíricos indicam que é, de longe, a mais importante? Bom, essa é a pergunta de um milhão de dólares. Voltaremos a ela...

É um caso a ser estudado a relação da mídia brasileira (e da elite do país) com o governo Bolsonaro. Não passam um dia sem ridicularizar – e com razão – o presidente da república, aproveitando o IBOPE do palhaço-chefe do circo em que se converteu a capital nacional.

Por outro lado, bajulam o ministro da economia, comemoram suas “reformas”, acreditam em seu liberalismo tosco e ajudam a vender seu discurso para a população. Como se Paulo Guedes fosse uma ilha de sanidade e visão esclarecida dentro de um governo paranoico, desorientado e sem a mínima compreensão dos problemas do país e de como resolvê-los.

Ora, será mesmo possível separá-los assim? Será mesmo que o chicago boy é esse poço de esclarecimento liberal no buraco sem fundo do governo Bolsonaro?

Paulo Guedes tinha várias opções de candidatos adeptos do liberalismo dentro do espectro republicano. Amoedo, Álvaro Dias, Alkmin e até mesmo Marina Silva seriam opções republicanas para a implantação de programas liberais. Mas a escolha foi por Bolsonaro...

Afinal, o que a associação com Bolsonaro diz sobre a natureza do liberalismo que Guedes propõe? Ou seria só uma coincidência o fato de seu modelo de país liberal ser justamente o Chile de Pinochet? Por que os telejornais citam as “reformas chilenas dos anos 70 e 80” para se referir ao modelo proposto por Guedes, mas sempre esquecem que os anos 70 e 80 do século XX foram os anos mais sangrentos da mais violenta e mais corrupta das ditaduras militares no continente latino-americano? Por que não buscam associações entre a “experiência chilena” do final do século passado e a convulsão que assola o país hoje? Ou alguém ainda acredita que elas não estão relacionadas?

Já escrevi em outros textos deste blog (especialmente em “Liberais conservadores?”) que o governo Bolsonaro (aqui incluso seu ministro da economia) pode ser chamado de muitas coisas, mas “liberal” certamente não está entre elas.

Ora, por que um economista liberal se associaria a um governo autoritário, moralista, machista, xenófobo, propagador do anti-intelectualismo e do ataque às instituições? Bem, talvez seja porque o liberalismo que ele defende precise de autoritarismo, de negação da democracia e de violência para ser implantado. Ou porque se trata de um liberalismo tão tacanho que não teria qualquer chance de prosperar em um governo minimamente comprometido com os preceitos republicanos e os procedimentos democráticos de construção de políticas públicas.

A reforma da previdência foi construída a partir de uma visão da pobreza e dos pobres como um peso, como um carma político, não como uma consequência do modelo de sociedade baseado na exclusão e na concentração de riqueza.

O bolsonarismo é adepto da tese de que os pobres devem ser eliminados. Por algum tempo isso foi disfarçado. Não é mais. Internamente as divergências são apenas em relação ao método de eliminação. O presidente e seus filhos, por exemplo, defendem a eliminação direta dos pobres, seja pela polícia, seja pelos “cidadãos de bem” armados a prontos para “se defender”. A ala do ministro da economia prevê sua eliminação pela própria pobreza, levada ao ponto de impossibilitar a sobrevivência.

(Não estou discutindo a necessidade de uma reforma previdenciária. Ela era evidente. Mas a mim não resta qualquer dúvida de que a reforma aprovada era a pior possível para a parcela mais pobre da população).

A reforma administrativa complementa o serviço. Depois de demonizar tudo o que é público, com ajuda da grande mídia e seus “analistas” de meia tigela, está pavimentado o caminho para o sucateamento e a privatização. Depois de popularizar a tese de que tudo se resume a equilibrar as contas públicas, ninguém reage à proposição de acabar com a obrigatoriedade de investimentos mínimos em saúde e educação. Depois de convencer a sociedade de que tudo o que existe de ruim no mundo é culpa dos servidores públicos, está legitimada a empreitada para caçá-los.

No último dia 05, enquanto apresentava seu pacote de medidas da reforma administrativa, Paulo Guedes explicava por que quer extinguir a estabilidade dos servidores públicos, especialmente daqueles que são filiados a partidos políticos: “Se é filiado a partido é militante. Eu não vou dar estabilidade para militante”.

A psicanálise ensina que a linguagem costuma nos trair, revelando o que o inconsciente realmente alimenta.

Ora, senhor ministro, a estabilidade é uma prerrogativa constitucional, não uma dádiva que o senhor dá para quem foi aprovado em concurso e simpatiza com sua ideologia. Estabilidade é uma prerrogativa do cargo, não um presente que o senhor decide quem merece e quem não merece, quem vai receber e quem não vai.

Mais que isso: a estabilidade é um preceito legal criado justamente para impedir que governos paranoicos como o que o senhor integra se utilizem da condição de autoridade política para perseguir servidores por motivos ideológicos – exatamente o que o senhor propõe fazer! Ou seja, a estabilidade não é uma garantia de emprego eterno, haja vista que existem, sim, e muitas, possibilidades de demissão de servidor público. A estabilidade existe justamente para preservar servidores de governos autoritários, evitando que utilizem o poder de governo para “punir” quem pensa diferente. Os motivos que o nobre ministro apresenta para “acabar com a estabilidade” são justamente os que a tornaram um preceito constitucional!

Mas, é claro, os grandes jornais e os grandes jornalistas do Brasil não deram atenção a essa parte do discurso do ministro. Importaram-se apenas com os números. Números que, tendo saído das cabeças e planilhas do ministério da economia, apontam maior chance de equilíbrio das contas públicas nos próximos anos. Mas, como nada é garantido, nem mesmo para Guedes, eis que ele propõe uma medida de segurança, uma garantia caso o plano não dê certo: reduzir a jornada de trabalho dos servidores, com proporcional redução dos salários.

Apenas mais um “sacrificiozinho”, segundo o nobre ministro. Afinal, até agora os servidores só foram atingidos por coisa pouca:
- Sua alíquota de contribuição previdenciária foi tornada progressiva, chegando a 22%;
- Contribuirão mais e durante mais tempo, mas ainda assim não poderão se aposentar com salário integral;
- Terão que continuar contribuindo depois de aposentados;
- A reforma prevê o bloqueio de todos os sistemas de promoção e progressão, impedindo-os de ascender na carreira.
- Terão sua jornada de trabalho e seus salários reduzidos, mas o volume de trabalho, obviamente, não.
- Os cortes orçamentários deteriorarão ainda mais as já precárias condições de trabalho, piorando os resultados, o que alimentará o ódio que a população é instigada a desenvolver contra o serviço público.

Diante de tudo isso, afinal, o que é ter a estabilidade “negada” pelo ministro?

Mas, e a reforma tributária? Ora, o ministro liberal disse que “essa fica para depois”, e deve se limitar a “unificação de tributos” para “simplificar o sistema de impostos no país”.

Pois é. Unificar impostos é, de fato, tudo o que precisamos. Afinal de contas, que importância tem o fato de nosso sistema tributário:
- Ser um dos mais injustos do planeta segundo vários organismos internacionais, como a ONU, já que é bancado pelos mais pobres?
- Ser baseado no consumo e não renda, o que faz com que a maior carga de tributos esteja vinculada à compra de produtos básicos e não de artigos de luxo?
- Adotar o modelo de progressão invertida, fazendo com que, proporcionalmente, os tributos diminuam à medida que a renda cresce?
- Não incidir sobre o mercado financeiro e a especulação, tornando o país um paraíso para banqueiros (enquanto o país afunda, o Itaú anuncia, na semana passada, novo recorde de lucros no terceiro trimestre do ano!)?

Curioso. Um “liberal radical” que considera a estabilidade do servidor público uma grande ameaça ao crescimento do país, mas vê no pior sistema tributário do planeta um probleminha secundário, que não tem pressa para ser resolvido, e que se pode ajustar com uma simples “unificação de impostos”.

Continuo acreditando que um governo realmente liberal (no sentido político e clássico do conceito) faria bem ao Brasil. Só espero que o país sobreviva aos liberais de mentirinha que sequer ficam constrangidos ao destruí-lo em velocidade nunca antes vista, e que depois deles ainda haja um Brasil para escolher, democraticamente, uma opção liberal no futuro.