sexta-feira, 24 de maio de 2019

AS BASES DO "BOLSONARISMO"


De modo um pouco simplificado, podemos dizer que Jair Bolsonaro foi eleito com os votos de dois grupos de eleitores. O primeiro, que poderíamos chamar de “núcleo duro do bolsonarismo”, é composto por uma militância de direita ideologicamente fanática, moralista, truculenta, antidemocrática e orgulhosamente autoritária. Nesse grupo estão: segmentos religiosos, profissionais ligados à segurança, uma parcela do empresariado, pseudo intelectuais seguidores do guru da Virgínia, liberais de Facebook, integrantes do Ministério Público e juízes com complexo de super-herói.

Esse “núcleo duro” é bastante estável, pois, apesar de tudo, se aglutina em torno de um conjunto de convicções ideológicas comum. Adepto de teorias conspiratórias, esse grupo acredita nas teses de seu “mito” de que tudo e todos agem para derrubá-lo e para inviabilizar qualquer iniciativa de seu governo. Aí estão, por exemplo, os militantes mais exaltados, que desferem ataques ao Congresso, ao STF, à mídia, e que apoiam as investidas mais autoritárias do presidente.

O segundo grupo, que foi o grande responsável pela eleição de Bolsonaro, é bem menos homogêneo. É composto, em termos gerais, por pessoas de todos os segmentos sociais descontentes com a situação do país, em especial com os escândalos de corrupção associados aos governos petistas e que há anos dominam o noticiário e o imaginário nacional.

Menos alinhados ideologicamente, esses eleitores não compartilham dos devaneios do primeiro grupo. O que os une é um sentimento difuso de descontentamento contra “tudo isso daí”. Votaram acreditando no discurso do “novo”, do político que vem de fora dos arranjos institucionais, do combate à política tradicional. Aí estão desde o moralista ressentido que acha que direitos iguais para homossexuais é um absurdo até o tiozinho do grupo da família no Whatsapp que prega tortura para quem fuma maconha.

No governo, Bolsonaro rapidamente se concentra em agradar especificamente o primeiro grupo. Seus discursos e suas iniciativas governamentais voltam-se cada vez mais para o “núcleo duro” dos seus apoiadores. E à medida que o presidente se concentra em criar e alimentar polêmicas, espalhar teorias da conspiração e incentivar ataques às instituições (Congresso e STF em especial), alimenta e reforça o apoio do “núcleo duro”, mas afasta progressivamente os seus eleitores mais moderados.

Esses últimos não se contentam com bravatas e discursos inflamados que só proliferam ódio e ressentimento. Seu voto foi uma aposta em reformas que foram vendidas como milagrosas, em políticas que fizessem o país retomar o crescimento, por mínimo que fosse. Não estão preocupados em ir pra rua gritar contra o Congresso Nacional ou contra os ministros do STF. O que esses eleitores querem é que o governo simplesmente governe e que adote um rumo – vá lá – mais conservador do que os anteriores.

Seus votos não foram, necessariamente, votos em Bolsonaro. Foram votos contra o PT, contra Lula, contra a esquerda, contra “tudo isso daí”. Não foram votos a favor da perseguição ideológica, da crucificação de professores, do atropelamento das instituições. Foram votos a favor de uma guinada à direita dentro do sistema.

E quanto mais Bolsonaro se concentra em inflamar seu “núcleo duro” de apoiadores, mais perde apoio entre os demais segmentos que ajudaram a elegê-lo. A aposta é de alto risco, e o presidente dá fortes indícios de subestimar o potencial destrutivo, para si mesmo e para o seu governo, dos efeitos da estratégia que utiliza.

A questão é que, inclusive dentre os eleitores de Bolsonaro, a maioria não quer apedrejar o professor de história do seu filho, não quer invadir o Congresso Nacional, não quer arrombar as portas do STF com um soldado e um Jeep, não acha que comprar um fuzil de assalto vai tornar sua vida mais segura, nem acredita que o presidente é guiado por Jesus para salvar o país dos comunistas.

A maioria desses eleitores só queria um governo diferente, que viesse de fora dos núcleos tradicionais da política do país (por que acreditaram que isso aconteceria, já é outra história). E, assim como a maior parte dos demais brasileiros, uma parcela crescente desses eleitores de Bolsonaro está assustada, insatisfeita, preocupada e pouco disposta a ir pra rua dar sustentação ao circo de horrores que o governo rapidamente se tornou.

Já se foram cinco meses desde a posse. Mas Bolsonaro ainda não começou a governar, e não dá indícios de que pretende – nem que sabe – fazê-lo. Optou por continuar em campanha eleitoral, e parece que é assim que pretende seguir. Se o fizer, continuará perdendo apoio. E esse encolhimento de sua base de sustentação não se dá apenas entre os eleitores. Ela também se espalha no Congresso, entre os empresários e até mesmo no meio militar.

É o que acontece com todos os ditadores. Ao revelar sua incapacidade de cumprir o que prometeram, eles se concentram em uma militância cada vez mais inflamada de um grupo cada vez menor, mais fanático e mais próximo ao ditador. E nesse contexto as teorias conspiratórias revelam sua face autodestrutiva: para se manter vivas, elas sempre precisam de conspiradores, que passam a ser vistos nos círculos cada vez mais próximos.

Sempre há conspiradores, e eles são vistos cada vez mais perto, entre os mais íntimos, até que sobre apenas o próprio ditador.

Esse movimento se acelera no governo Bolsonaro. Incapaz de governar – pois Deus parece estar ocupado com coisa mais importante do que guiar nosso presidente – ele depende cada vez mais das hostes de fanáticos para dar-lhe sustentação. Para manter essas hostes inflamadas, ele precisa polemizar cada vez mais, radicalizar o discurso e a prática, ideologizar todas as dimensões do governo.

Mas há, aí, um problema. Quanto mais o governo se radicaliza ideologicamente, menor se torna o número de fanáticos dispostos a segui-lo. O crescimento do fanatismo se dá, nesse caso, paralelo à diminuição dos fanáticos. E se a lógica não for abandonada, não tardará o momento em que esses serão em número insuficiente para segurar a tenda do circo em pé.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

A ESQUERDA INERTE


O país está paralisado. À beira de uma “recessão oficial”, a economia retrocede. A inflação, especialmente dos alimentos, galopa. O emprego e a renda dos mais pobres encolhem. O Estado é desmantelado e privatizado. As políticas públicas são esfaceladas. A saúde definha. A educação não tem rumo e seu ministério tornou-se uma balbúrdia permanente. Os aposentados viraram inimigos da nação e usurpadores do dinheiro público. As universidades e seus professores são caçados como hereges.

O governo não tem programa, não tem ideia, não tem rumo, não tem noção. Virou um circo de horrores, um grande reality show comandado por um “mito” que é orientado por um astrólogo "gagá" que mora nos Estados Unidos, afirma que a terra é plana e que a Coca-Cola é feita com fetos humanos.

Parece um cenário propício à oposição, cheio de lacunas que poderiam ser preenchidas com grandes debates sobre o país e seu desenvolvimento, grandes projetos nacionais e formas de colocá-los em curso.

Contudo, não é nada disso que vemos diariamente. Ao contrário, o que se vê é uma esquerda desarticulada, inerte, cheirando a mofo de velhas convicções e incapaz de propor um projeto alternativo minimamente coerente e viável.

Em vez de unir as mentes e os discursos oposicionistas em torno de uma defesa do país e de sua democracia, os partidos de esquerda batem cabeça e brigam entre si pelos espólios do desgoverno de plantão. Enquanto isso aderem à estratégia fácil do “quanto pior, melhor”, apostando no definhamento progressivo das bases de apoio ao atual governo.

No lugar de consolidar um campo oposicionista coerente, parlamentares e líderes esquerdistas preferem torcer para que estudantes e professores universitários façam greve, ocupem as ruas, protestem e confrontem o governo que eles se mostram incapazes de enfrentar a não ser com bravatas.

A esquerda brasileira tem em seu currículo incontáveis oportunidades de autocrítica desperdiçadas. E caminha a passos largos para ampliar a lista. Prefere torcer para que tudo dê errado e o governo do país caia em seu colo por desígnio do destino a reconhecer os próprios erros e (re)começar o movimento de reconstrução de si mesma, de suas ideias, de seus métodos e de seus projetos de país.

Não há dúvidas de que os contingenciamentos orçamentários na educação, além de serem inexplicáveis do ponto de vista estratégico para um país que precisa muito e urgentemente de educação, são uma retaliação do ministro e do governo às universidades, motivadas pelo ressentimento ao pensamento crítico e pelo ódio a quem estuda mais do que eles.

Contudo, não se pode negar que esses contingenciamentos ocorrem desde 2015 e que, nos anos anteriores, nem a esquerda e nem a mídia fizeram o barulho que fazem agora. Claro, antes tarde do que nunca. Mas o caráter seletivo da revolta deixa margem para especular que, para além do necessário protesto contra o desmantelamento da educação e das universidades, ela também é lamentavelmente oportunista.

Outro exemplo: as universidades federais e institutos federais de educação estão em polvorosa com as sinalizações do governo de que não pretende nomear, necessariamente, o primeiro colocado nas eleições para reitoria. Utilizando-se do estatuto da lista tríplice, o governo pretende nomear apenas candidatos alinhados ideologicamente, o que na prática é mais uma forma de perseguir e eliminar “esquerdistas”.

Ora, não há dúvidas de que o governo recorre ao lado mais autoritário e deplorável do uso da máquina de governo para perseguir quem não se encaixa em suas convicções ideológicas. Mas isso não deveria servir para esconder o fato de que a esquerda, liderada pelo Partido dos Trabalhadores, teve 13 anos para mudar a regra da lista tríplice e não o fez. Bastava uma alteração na legislação em vigor, para a qual possuía ampla maioria no Congresso, na maior parte desses 13 anos, e a autonomia universitária estaria um pouco mais protegida dos ataques ideológicos que vem sofrendo.

A despolitização que vemos avançar sobre a sociedade brasileira e suas instituições, com destaque para a educação, não é senão o “reverso da moeda” do que fez a esquerda durante três décadas de democracia, politizando absolutamente tudo em nome de uma luta permanente do bem contra o mal.

Tudo foi politizado, do lugar que frequentamos para nos alimentar à comida que consumimos e a forma como nos sentamos à mesa para fazê-lo; dos filmes que assistimos e livros que lemos às palavras que usamos para nos dirigir aos amigos ou aos filhos. Se o politicamente correto representou um avanço em termos civilizatórios, não é menos verdade que instituiu um ambiente policialesco e denuncista em nossa sociedade, em especial em nossas escolas e universidades.

Os crimes cometidos pelo Ministério Público e por Juízes com complexo de herói, numa empreitada messiânica para combater a corrupção, não são apresentados e discutidos no contexto de um debate profundo sobre nossas instituições, sobre a divisão dos poderes e sobre a cultura política que nos define. Ao contrário, eles são usados para desviar o foco e justificar práticas nada republicanas de conluio entre entes privados e estruturas estatais, entre servidores dos altos escalões do governo e a banda mais podre do empresariado nacional. Práticas que marcaram a alma dos governos petistas a partir de 2003.

Centralizadora da oposição, a esquerda terá, nos próximos anos, importância histórica em nosso país. Mas precisa entender que a derrocada do atual governo, que parece cada vez mais inevitável, não é apenas uma oportunidade para seu retorno ao poder. Essa derrocada tem grande potencial para levar com ela toda a institucionalidade democrática, o que significa que, depois da esquina, pode não haver democracia para governar.

A esquerda precisa reconhecer que tem grande parcela de responsabilidade pelo desgoverno que temos hoje. Os votos que o elegeram não foram apenas, e talvez nem principalmente, votos em Bolsonaro. Foram votos contra o PT, contra a esquerda, contra “tudo isso daí”.

Essa mesma esquerda precisa se repensar, precisa se renovar, precisa fazer uma ampla e profunda autocrítica. Precisa compreender que a democracia não é uma luta messiânica do bem contra o mal que justifica tudo em nome de um projeto, por mais nobre que ele possa ser. Precisa aprender com os erros que cometeu e com os erros que o atual governo vem empilhando dia após dia.

Se for capaz disso, talvez consiga aglutinar a representação dos brasileiros que não concordam com os rumos que o país e seu governo vêm tomando, os quais crescem em número a cada dia.

Bolsonaro e seu governo caminham a passos largos para a autodestruição. Resta saber se, depois da esquina, os brasileiros terão uma alternativa democrática coerente e confiável para apoiar, ou se só lhes restará a adesão novamente messiânica a um governo dos quartéis.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

FREUD NA VEIA


Escrevi em texto da semana passada que o ressentimento e o ódio, orientados por um intenso espírito de vingança, estão entre as principais marcas do governo Bolsonaro. Volto ao tema para explorar, com um pouco mais de espaço, o argumento de que é na psicanálise e não na teoria política que encontraremos os melhores referenciais para explicar o caos que assola nossa presidência.

Comecemos pelo início. Jair Bolsonaro pode ser acusado de muitas coisas, mas estelionato eleitoral não é uma delas. Ele nunca escondeu que era despreparado para o governo do país. Sempre dizendo que se cercaria de pessoas mais preparadas do que ele – Paulo Guedes em destaque – e inclusive assumindo que confiava em uma intervenção divina para mostrar-lhe o caminho, nosso presidente foi eleito sem ter sequer uma vaga noção do que fazer com o país em termos de projetos claros para áreas cruciais como saúde, educação e infraestrutura, por exemplo.

Mais que isso, muitos eleitores inclusive deram seu voto a Bolsonaro justamente por não ter um projeto de nação, mas porque seu discurso tinha como atrativo fundamental o apelo populista e moralista de combate à “perversão”, tanto no campo cultural quanto político. Caçar comunistas, combater os que ameaçam a família tradicional e as “pessoas de bem” (seja lá o que for que isso signifique), acabar com tudo o que lembre a esquerda e sua visão de mundo.

Decorre daí que seu discurso eleitoral (marcadamente machista, anti-intelectualista, antidemocrático, autoritário) tenha se apegado ao campo moral para angariar eleitores e seus votos. E agora, na presidência, Bolsonaro recorre aos mesmos elementos para manter seu eleitorado mais fiel. Eleito pelo moralismo do discurso, ele tenta dar a seu governo um rumo moralista como forma de assegurar algum nível de apoio.

Ora, é justamente esse componente moralista que ainda precisa ser melhor compreendido, tanto como elemento estruturante do modo de governar do presidente quanto como categoria central dos parâmetros pelos quais seus seguidores mais leais lhe dão aprovação.

A psicanálise nos ensinou que o impulso para destruir o outro ou algo que ele faz ou diz frequentemente se origina do desejo subjetivo de destruir a mesma coisa em nós mesmos. O ódio aos homossexuais e o desejo de aniquilá-los, por exemplo, decorre diretamente de inclinações subjetivas de tal natureza que, embora reprimidas, não podem ser completamente eliminadas. Incapaz de “matar” o impulso homossexual que possui (o desejo de fazê-lo decorre de pressões morais, convicções religiosas, etc.), o indivíduo passa a “caçar” a homossexualidade alheia. Quando agride (física ou verbalmente) um homossexual, ele está, no fundo, tentando “matar” seus próprios impulsos.

O mesmo princípio pode ser aplicado a outras questões, seja no campo religioso, político ou comportamental. Claro, não se trata de um modelo capaz de explicar tudo e todos como, aliás, nenhum modelo é. Mas temos aí um poderoso instrumento de interpretação do comportamento obsessivo de nosso presidente e de sua equipe.

Vejamos: divulgação de vídeos de golden shower; preocupação profunda com a higiene peniana dos seus concidadãos; convite aos turistas estrangeiros para que venham ao país praticar sexo – claro, desde que seja com mulheres; ênfase em declaração dada em entrevista (ao apresentador Silvio Santos) de que pratica sexo regularmente e sem uso de “aditivos”; acusação a uma colega de bancada (quando era deputado) de que sua suposta escassez de beleza era o único motivo para não estuprá-la; confissão pública e enfática de que fez xixi na cama até os cinco anos de idade (essa é extremamente reveladora).

São apenas alguns episódios que se somam a outros de mesma natureza e se acumulam para não deixar dúvida sobre o que há de mais reprimido em nosso comandante-em-chefe. Partindo daí, muitos aspectos de seu discurso e comportamento adquirem novo e poderoso significado.

Podemos incluir aí o novo e vaidoso ministro da educação. Ao anunciar cortes de 30% nos orçamentos de universidades federais, apontou como motivo o fato de essas instituições, segundo ele, fazerem “balburdia” e permitirem “gente pelada”. Algo bastante compreensível para um professor universitário inexpressivo, para não dizer insignificante, sem produção intelectual alguma e, que pelo que vem demonstrando, provavelmente sempre foi o último da lista a ser convidado para festas com gente pelada.

Quanto às balburdias, registre-se que ele se referia a eventos acadêmicos cujos palestrantes eram “da esquerda”, como o ex-candidato à presidência Guilherme Boulos. Ou seja, eventos nos quais ele jamais foi elemento de destaque em sua universidade.

O mesmo pode ser dito de sua obsessão em aniquilar as ciências humanas e a filosofia. Afinal, é área de conhecimento muito próxima àquela de onde ele vem, mas na qual nunca passou de professor insignificante. Seria seu ódio às ciências humanas “apenas” decorrente de sua crença de que elas formam comunistas? Ou seria a manifestação do impulso para reprimir em si mesmo a incompetência e a incapacidade de se destacar como um de seus representantes?

E a “lógica” se espalha pelos palácios do governo. O Ministro do Meio Ambiente é conhecido por defender ações, leis e programas que permitem e até incentivam a destruição do meio ambiente; o Ministro da Justiça virou celebridade nacional praticando a “jurisprudência criativa” para prender integrantes de governos anteriores, ao passo que parece conviver tranquilamente com o fato de fazer parte de um governo atolado em negócios com a milícia; a Ministra dos Direitos Humanos se apega a convicções religiosas para disfarçar discursos e projetos machistas e potencialmente homofóbicos.

Poderíamos continuar com os exemplos, mas isso tornaria esse texto ainda mais longo.

Quando o governo Bolsonaro resolver assumir o papel de governo e começar a apresentar projetos para o país, talvez possamos voltar ao exercício de analisá-lo à luz dos referenciais da teoria política e da economia. Mas, enquanto ele se limitar a fazer de Brasília uma gigantesca balbúrdia de cunho ideológico-moralista, é à Freud que precisamos recorrer para tentar compreendê-lo.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

ÓDIO AO PENSAMENTO


O governo Bolsonaro não é um governo orientado pelo conservadorismo. É um governo orientado pelo ressentimento e pelo ódio. E esse ódio não é simplesmente contra os “comunistas” ou contra a esquerda. Esse ódio é contra o livre pensamento. É contra tudo e todos que veem o mundo de modo diferente.

O Brasil jamais teve um governo liberal, e continua sem tê-lo. Com exceção do ministro da economia e alguns membros de sua equipe, adeptos de uma versão tão radical quanto tosca do neoliberalismo, o governo de plantão sequer compreende os preceitos do liberalismo enquanto teoria política. Tampouco sabe o que é comunismo, marxismo ou teoria do intelectual orgânico (aquela de Gramsci que eles tanto criticam, mas nunca leram).

Quando esse governo, através do seu recém-chegado ministro da educação, anuncia o estrangulamento financeiro aos cursos de graduação em ciências humanas e filosofia, não apenas se baseia em informações falsas e distorcidas (por exemplo, a de que esses cursos seriam financeiramente privilegiados nas universidades desde os governos do PT porque formariam comunistas), mas também assume, equivocadamente, que esses cursos formam críticos ao seu governo porque disseminam o marxismo.

Ora, não há qualquer necessidade de usar Marx para criticar o atual governo. Nem Gramsci, nem os teóricos da escola de Frankfurt (se alguém não souber o que é, procure no Google), nem qualquer pensador marxista mais contemporâneo. O desgoverno de plantão pode ser desmontado analiticamente apenas com autores centrais ao próprio pensamento liberal.

Tomemos, por exemplo, John Locke, pai do liberalismo, em meados do século XVIII. Foi ele quem defendeu que a liberdade individual, o direito de cada cidadão viver sua vida do modo que julgar adequado, com absoluta liberdade de pensamento, de ação, de comportamento, são inalienáveis e sagrados. Ao Estado não apenas é proibida qualquer tentativa de impor aos indivíduos valores morais, princípios religiosos, estilos de vida, padrões de comportamento. Lhe é imposto ainda o dever de assegurar que também entre os indivíduos nenhum imponha a outro qualquer restrição à essa liberdade.

E Locke vai além. A legitimidade de qualquer governo está intimamente associada à sua capacidade de assegurar tais liberdades, que não são invenções ou dádivas do Estado, mas prerrogativas individuais que lhe são anteriores, e que àquele cabe garantir a todos os cidadãos. Locke defende inclusive o tiranicídio, que é o direito assegurado ao povo de atacar e destruir qualquer governo quando ele se tornar uma ameaça às liberdades individuais.

Ora, a obsessão por controlar a vida privada das pessoas, seu comportamento sexual, seu estilo de vida, não é, de modo algum, decorrente da adesão ao liberalismo. Ao contrário, é sua negação. Essa obsessão não é consequência de adesão à teoria alguma; é vingança institucionalizada contra modos de viver e pensar que assustam por serem diferentes. Freud e não Locke é quem explica esse governo e suas decisões.

São essas ideias liberais que estão na base da Revolução Francesa e de todas as mudanças que ela provocou no mundo ocidental. Dentre elas a consolidação dos Direitos Humanos que, ademais de serem constantemente cooptados pela esquerda, por exemplo, no Brasil, como sendo invenção sua, são preceitos iminentemente liberais.

Mas, seguimos nosso raciocínio. Vamos até Tocqueville, já no século XIX. Outro grande marco do pensamento liberal, estudou a cultura e as instituições políticas nos Estados Unidos por volta de 1830. Ficou maravilhado com a capacidade de organização das comunidades estadunidenses, especialmente as mais isoladas. Encantou-se com o efeito político do associativismo e do comunitarismo, com o princípio da igualdade de condições – visto que é ela que assegura, segundo os preceitos liberais, a possibilidade de destaque individual.

Quando retornou à França, Tocqueville redigiu conselhos (“A Democracia na América”) aos franceses, mostrando-lhes o caminho para tirar da democracia o máximo que ela poderia dar. Dentre os mais importantes estavam a preocupação com a igualdade de condições, o incentivo ao associativismo, a defesa da liberdade de expressão, o fomento ao pensamento crítico e à divergência de ideias, pois é dela que nascem novas teorias, novas formas de conceber o mundo e de transformá-lo.

Cheguemos à teoria política liberal dos séculos XX e XXI. Para não alongar esse texto, fiquemos com John Rawls, um dos grandes arquitetos do liberalismo de meados do século passado. Ao aproximar o liberalismo da teoria jurídica, construiu um dos maiores arcabouços teóricos em torno da justiça, de sua definição, de sua promoção e do papel do Estado em assegurá-la.

E, mais uma vez, lá estão os princípios da liberdade de expressão, de pensamento, de comportamento. Lá está, novamente, a tese de que a liberdade só pode ser exercida em sua plenitude se ela for uma prerrogativa de todos os cidadãos, o que implica assumir a igualdade de condições como primeiro e mais importante dos princípios de qualquer sociedade.

Por fim, lembremos de Amartya Sen, Indiano, pensador contemporâneo adepto do liberalismo e ferrenho defensor das políticas públicas sociais. Seu argumento central é o da defesa do “Desenvolvimento como liberdade”. Não há, segundo ele, como se falar em desenvolvimento enquanto comunidades e mesmo sociedades inteiras são analfabetas, passam fome, não tem acesso a tratamentos básicos de saúde ou à justiça. Não há como se falar em desenvolvimento enquanto crianças morrem de desnutrição, não têm acesso à escola, não podem desenvolver suas capacidades com plenitude.

A liberdade é um fim, um ideal político, que só pode ser alcançado quando os cidadãos são tratados como cidadãos, quando podem viver em condições de igualdade, e quando têm assegurados seus direitos e condições para desenvolver todo o seu potencial. E isso, claro, se faz com políticas públicas e com governos atuantes.

Pois é. Tudo isso pode ser tomado como argumento para desconstruir os discursos autoritários, preconceituosos, raivosos e incompetentes do atual governo. E, contudo, sequer passamos perto de autores marxistas. Ao contrário, ficamos apenas no campo da teoria liberal, aquela mesma que eles dizem defender, mas que, ou nunca leram, ou a distorcem estupidamente ao ponto de fazê-la caber em suas minúsculas caixinhas ideológicas.

Quando o atual governo ataca as universidades, os professores, as ciências humanas, a filosofia, ele não está atacando o marxismo. Ele está usando a condição de governo e a estrutura do Estado para atacar o livre pensamento em sua acepção mais básica.

Não é preciso ser marxista para ver o ridículo. Basta pensar com autonomia, com rigor e com o mínimo de honestidade intelectual. E o pensamento autônomo e o rigor de método são princípios elementares do fazer científico, o que inclui as ciências humanas, é claro, mas não é exclusivo delas.

O recém-chegado ministro da educação não acabará com as críticas ao governo perseguindo e atacando os cursos de ciências humanas. O que ele conseguirá é apenas intensificar ainda mais as críticas ao governo do qual faz parte. Porque frequentando ou não cursos de humanas, a maioria dos brasileiros ainda é capaz de pensar. E basta fazê-lo com o mínimo de rigor e profundidade para concluir que o país não é governado por “liberais conservadores”, mas por um bando de trogloditas alucinados que não tem a mínima noção do que fazer com o país que comandam.