Escrevi em texto da
semana passada que o ressentimento e o ódio, orientados por um intenso espírito
de vingança, estão entre as principais marcas do governo Bolsonaro. Volto ao
tema para explorar, com um pouco mais de espaço, o argumento de que é na
psicanálise e não na teoria política que encontraremos os melhores referenciais
para explicar o caos que assola nossa presidência.
Comecemos pelo início.
Jair Bolsonaro pode ser acusado de muitas coisas, mas estelionato eleitoral não
é uma delas. Ele nunca escondeu que era despreparado para o governo do país.
Sempre dizendo que se cercaria de pessoas mais preparadas do que ele – Paulo
Guedes em destaque – e inclusive assumindo que confiava em uma intervenção
divina para mostrar-lhe o caminho, nosso presidente foi eleito sem ter sequer
uma vaga noção do que fazer com o país em termos de projetos claros para áreas
cruciais como saúde, educação e infraestrutura, por exemplo.
Mais que isso, muitos
eleitores inclusive deram seu voto a Bolsonaro justamente por não ter um
projeto de nação, mas porque seu discurso tinha como atrativo fundamental o
apelo populista e moralista de combate à “perversão”, tanto no campo cultural
quanto político. Caçar comunistas, combater os que ameaçam a família
tradicional e as “pessoas de bem” (seja lá o que for que isso signifique),
acabar com tudo o que lembre a esquerda e sua visão de mundo.
Decorre daí que seu
discurso eleitoral (marcadamente machista, anti-intelectualista,
antidemocrático, autoritário) tenha se apegado ao campo moral para angariar
eleitores e seus votos. E agora, na presidência, Bolsonaro recorre aos mesmos
elementos para manter seu eleitorado mais fiel. Eleito pelo moralismo do
discurso, ele tenta dar a seu governo um rumo moralista como forma de assegurar
algum nível de apoio.
Ora, é justamente esse
componente moralista que ainda precisa ser melhor compreendido, tanto como
elemento estruturante do modo de governar do presidente quanto como categoria
central dos parâmetros pelos quais seus seguidores mais leais lhe dão
aprovação.
A psicanálise nos
ensinou que o impulso para destruir o outro ou algo que ele faz ou diz frequentemente
se origina do desejo subjetivo de destruir a mesma coisa em nós mesmos. O ódio
aos homossexuais e o desejo de aniquilá-los, por exemplo, decorre diretamente
de inclinações subjetivas de tal natureza que, embora reprimidas, não podem ser
completamente eliminadas. Incapaz de “matar” o impulso homossexual que possui
(o desejo de fazê-lo decorre de pressões morais, convicções religiosas, etc.),
o indivíduo passa a “caçar” a homossexualidade alheia. Quando agride (física ou
verbalmente) um homossexual, ele está, no fundo, tentando “matar” seus próprios
impulsos.
O mesmo princípio pode
ser aplicado a outras questões, seja no campo religioso, político ou
comportamental. Claro, não se trata de um modelo capaz de explicar tudo e todos
como, aliás, nenhum modelo é. Mas temos aí um poderoso instrumento de
interpretação do comportamento obsessivo de nosso presidente e de sua equipe.
Vejamos: divulgação de
vídeos de golden shower; preocupação profunda
com a higiene peniana dos seus concidadãos; convite aos turistas estrangeiros para
que venham ao país praticar sexo – claro, desde que seja com mulheres; ênfase
em declaração dada em entrevista (ao apresentador Silvio Santos) de que pratica
sexo regularmente e sem uso de “aditivos”; acusação a uma colega de bancada
(quando era deputado) de que sua suposta escassez de beleza era o único motivo
para não estuprá-la; confissão pública e enfática de que fez xixi na cama até
os cinco anos de idade (essa é extremamente reveladora).
São apenas alguns
episódios que se somam a outros de mesma natureza e se acumulam para não deixar
dúvida sobre o que há de mais reprimido em nosso comandante-em-chefe. Partindo
daí, muitos aspectos de seu discurso e comportamento adquirem novo e poderoso significado.
Podemos incluir aí o
novo e vaidoso ministro da educação. Ao anunciar cortes de 30% nos orçamentos
de universidades federais, apontou como motivo o fato de essas instituições,
segundo ele, fazerem “balburdia” e permitirem “gente pelada”. Algo bastante
compreensível para um professor universitário inexpressivo, para não dizer
insignificante, sem produção intelectual alguma e, que pelo que vem demonstrando,
provavelmente sempre foi o último da lista a ser convidado para festas com
gente pelada.
Quanto às balburdias,
registre-se que ele se referia a eventos acadêmicos cujos palestrantes eram “da
esquerda”, como o ex-candidato à presidência Guilherme Boulos. Ou seja, eventos
nos quais ele jamais foi elemento de destaque em sua universidade.
O mesmo pode ser dito
de sua obsessão em aniquilar as ciências humanas e a filosofia. Afinal, é área
de conhecimento muito próxima àquela de onde ele vem, mas na qual nunca passou
de professor insignificante. Seria seu ódio às ciências humanas “apenas”
decorrente de sua crença de que elas formam comunistas? Ou seria a manifestação
do impulso para reprimir em si mesmo a incompetência e a incapacidade de se
destacar como um de seus representantes?
E a “lógica” se espalha
pelos palácios do governo. O Ministro do Meio Ambiente é conhecido por defender
ações, leis e programas que permitem e até incentivam a destruição do meio
ambiente; o Ministro da Justiça virou celebridade nacional praticando a
“jurisprudência criativa” para prender integrantes de governos anteriores, ao
passo que parece conviver tranquilamente com o fato de fazer parte de um
governo atolado em negócios com a milícia; a Ministra dos Direitos Humanos se
apega a convicções religiosas para disfarçar discursos e projetos machistas e
potencialmente homofóbicos.
Poderíamos continuar
com os exemplos, mas isso tornaria esse texto ainda mais longo.
Quando o governo
Bolsonaro resolver assumir o papel de governo e começar a apresentar projetos
para o país, talvez possamos voltar ao exercício de analisá-lo à luz dos
referenciais da teoria política e da economia. Mas, enquanto ele se limitar a
fazer de Brasília uma gigantesca balbúrdia de cunho ideológico-moralista, é à
Freud que precisamos recorrer para tentar compreendê-lo.
Na minha tese de doutorado escrevi um capítulo sobre ressentimento, base de muitos movimentos de esquerda e direita pelo mundo afora, tentando entender os acontecimentos das décadas de 70 e 80
ResponderExcluirFreud e Nietzsche se alimentaram um das palavras do outro nesse âmbito. O último, sob um olhar mais sociológico , na sua Genealogia da Moral, em 1887, escreve:"...uma espécie superior de senhores, posta em proporção com uma espécie inferior,com um 'abaixo' essa é a origem da oposição bom e mau...". Nas três esferas que essa abordagem, niilista, digamos, a psicologica fecha com o quê escreveste, Ivann na interiorização e o recalque desse ódio pelos inferiores, sua transformação em "...humildade resignada, a fraqueza disfarçada em amor da justiça, o ódio 'recalcado', transformado... em ódio a si mesmo. O livro de Bresciani e Mascara (2004) nos explica isso de forma bem clara. Como comparatista, gosto de ter alguém para debater este assunto. Parabéns pelo texto. Adelante!