O país está paralisado.
À beira de uma “recessão oficial”, a economia retrocede. A inflação,
especialmente dos alimentos, galopa. O emprego e a renda dos mais pobres
encolhem. O Estado é desmantelado e privatizado. As políticas públicas são
esfaceladas. A saúde definha. A educação não tem rumo e seu ministério
tornou-se uma balbúrdia permanente. Os aposentados viraram inimigos da nação e
usurpadores do dinheiro público. As universidades e seus professores são
caçados como hereges.
O governo não tem
programa, não tem ideia, não tem rumo, não tem noção. Virou um circo de
horrores, um grande reality show comandado
por um “mito” que é orientado por um astrólogo "gagá" que mora nos Estados Unidos,
afirma que a terra é plana e que a Coca-Cola é feita com fetos humanos.
Parece um cenário
propício à oposição, cheio de lacunas que poderiam ser preenchidas com grandes
debates sobre o país e seu desenvolvimento, grandes projetos nacionais e formas
de colocá-los em curso.
Contudo, não é nada disso
que vemos diariamente. Ao contrário, o que se vê é uma esquerda desarticulada,
inerte, cheirando a mofo de velhas convicções e incapaz de propor um projeto
alternativo minimamente coerente e viável.
Em vez de unir as mentes
e os discursos oposicionistas em torno de uma defesa do país e de sua
democracia, os partidos de esquerda batem cabeça e brigam entre si pelos
espólios do desgoverno de plantão. Enquanto isso aderem à estratégia fácil do
“quanto pior, melhor”, apostando no definhamento progressivo das bases de apoio
ao atual governo.
No lugar de consolidar
um campo oposicionista coerente, parlamentares e líderes esquerdistas preferem
torcer para que estudantes e professores universitários façam greve, ocupem as
ruas, protestem e confrontem o governo que eles se mostram incapazes de
enfrentar a não ser com bravatas.
A esquerda brasileira
tem em seu currículo incontáveis oportunidades de autocrítica desperdiçadas. E
caminha a passos largos para ampliar a lista. Prefere torcer para que tudo dê
errado e o governo do país caia em seu colo por desígnio do destino a
reconhecer os próprios erros e (re)começar o movimento de reconstrução de si
mesma, de suas ideias, de seus métodos e de seus projetos de país.
Não há dúvidas de que
os contingenciamentos orçamentários na educação, além de serem inexplicáveis do
ponto de vista estratégico para um país que precisa muito e urgentemente de
educação, são uma retaliação do ministro e do governo às universidades,
motivadas pelo ressentimento ao pensamento crítico e pelo ódio a quem estuda
mais do que eles.
Contudo, não se pode
negar que esses contingenciamentos ocorrem desde 2015 e que, nos anos
anteriores, nem a esquerda e nem a mídia fizeram o barulho que fazem agora.
Claro, antes tarde do que nunca. Mas o caráter seletivo da revolta deixa margem
para especular que, para além do necessário protesto contra o desmantelamento
da educação e das universidades, ela também é lamentavelmente oportunista.
Outro exemplo: as
universidades federais e institutos federais de educação estão em polvorosa com
as sinalizações do governo de que não pretende nomear, necessariamente, o
primeiro colocado nas eleições para reitoria. Utilizando-se do estatuto da
lista tríplice, o governo pretende nomear apenas candidatos alinhados
ideologicamente, o que na prática é mais uma forma de perseguir e eliminar
“esquerdistas”.
Ora, não há dúvidas de
que o governo recorre ao lado mais autoritário e deplorável do uso da máquina
de governo para perseguir quem não se encaixa em suas convicções ideológicas.
Mas isso não deveria servir para esconder o fato de que a esquerda, liderada
pelo Partido dos Trabalhadores, teve 13 anos para mudar a regra da lista
tríplice e não o fez. Bastava uma alteração na legislação em vigor, para a qual
possuía ampla maioria no Congresso, na maior parte desses 13 anos, e a autonomia
universitária estaria um pouco mais protegida dos ataques ideológicos que vem
sofrendo.
A despolitização que
vemos avançar sobre a sociedade brasileira e suas instituições, com destaque
para a educação, não é senão o “reverso da moeda” do que fez a esquerda
durante três décadas de democracia, politizando absolutamente tudo em nome de
uma luta permanente do bem contra o mal.
Tudo foi politizado, do
lugar que frequentamos para nos alimentar à comida que consumimos e a forma
como nos sentamos à mesa para fazê-lo; dos filmes que assistimos e livros que
lemos às palavras que usamos para nos dirigir aos amigos ou aos filhos. Se o
politicamente correto representou um avanço em termos civilizatórios, não é
menos verdade que instituiu um ambiente policialesco e denuncista em nossa
sociedade, em especial em nossas escolas e universidades.
Os crimes cometidos
pelo Ministério Público e por Juízes com complexo de herói, numa empreitada
messiânica para combater a corrupção, não são apresentados e discutidos no
contexto de um debate profundo sobre nossas instituições, sobre a divisão dos
poderes e sobre a cultura política que nos define. Ao contrário, eles são
usados para desviar o foco e justificar práticas nada republicanas de conluio
entre entes privados e estruturas estatais, entre servidores dos altos escalões
do governo e a banda mais podre do empresariado nacional. Práticas que marcaram
a alma dos governos petistas a partir de 2003.
Centralizadora da
oposição, a esquerda terá, nos próximos anos, importância histórica em nosso
país. Mas precisa entender que a derrocada do atual governo, que parece cada
vez mais inevitável, não é apenas uma oportunidade para seu retorno ao poder.
Essa derrocada tem grande potencial para levar com ela toda a
institucionalidade democrática, o que significa que, depois da esquina, pode
não haver democracia para governar.
A esquerda precisa
reconhecer que tem grande parcela de responsabilidade pelo desgoverno que temos
hoje. Os votos que o elegeram não foram apenas, e talvez nem principalmente,
votos em Bolsonaro. Foram votos contra o PT, contra a esquerda, contra “tudo
isso daí”.
Essa mesma esquerda
precisa se repensar, precisa se renovar, precisa fazer uma ampla e profunda
autocrítica. Precisa compreender que a democracia não é uma luta messiânica do
bem contra o mal que justifica tudo em nome de um projeto, por mais nobre que
ele possa ser. Precisa aprender com os erros que cometeu e com os erros que o
atual governo vem empilhando dia após dia.
Se for capaz disso,
talvez consiga aglutinar a representação dos brasileiros que não concordam com
os rumos que o país e seu governo vêm tomando, os quais crescem em número a
cada dia.
Bolsonaro e seu governo
caminham a passos largos para a autodestruição. Resta saber se, depois da
esquina, os brasileiros terão uma alternativa democrática coerente e confiável para
apoiar, ou se só lhes restará a adesão novamente messiânica a um governo dos
quartéis.
Que poder tem o conhecimento! O que foi escrito nesse texto há um ano atras, é o que estamos vivendo hoje, sem tirar nem por. Sua forma bacana e generosa de escrever, torna as idéias e informações acessíveis e observáveis na prática. Os seus textos deixam na gente um gostinho de quero mais. Agradecida.
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