sexta-feira, 27 de setembro de 2019

CONTRA A “NOVA POLÍTICA”


Como professor de teoria política, de modo geral, tendo a preferir os clássicos. Não se trata de nenhuma simpatia maior pelo “antigo”, mas de uma admiração pela sua capacidade de perceber as coisas com amplitude e profundidade que é cada vez mais rara no campo do pensamento.

Quando se trata da “política real”, de sua dimensão empírica, minhas preferências não são muito diferentes. Não jogo no time dos que julgam algo como “bom” ou “melhor” simplesmente por que é “novo”. A condição de novidade nunca foi suficiente como atestado de qualidade de coisa alguma, e com as formas de “fazer política”, obviamente, não é diferente.

Pelo mundo afora de modo geral, e no Brasil em particular, está na moda (e moda é a encarnação da ideia de que o novo é bom só porque é novo) o discurso da “nova política”. Trata-se de um conceito vago, que significa muitas coisas, sempre ao gosto dos que o utilizam, em especial líderes populistas, hábeis em transformar as frustrações dos eleitores com os mais diversos temas em apoio político-eleitoral.

Assim, a “nova política” pode significar guinadas nacionalistas e xenófobas, como nos EUA, protecionismo antiglobalista, como na Inglaterra, ou combate a corrupção e ao socialismo, como no caso brasileiro. É especificamente ao nosso caso que quero me referir hoje.

Roberto Schwarz, em um belíssimo texto de 1972 (As ideias fora do lugar), descreveu de forma muito precisa a capacidade brasileira de distorcer ideias, modelos e teorias para que deem aparência de novidade a práticas e hábitos culturalmente arraigados, sem transformá-los de fato. Foi assim que produzimos intelectuais e políticos liberais ainda no século XIX, que conviviam tranquilamente com a escravidão. É assim que produzimos, hoje, liberais de meia tigela, que pregam o anarquismo na economia, mas são obcecados por controlar o que as pessoas assistem na televisão, ou como vivem suas vidas e seus relacionamentos afetivos.

Foi assim que o país elegeu, para a Presidência da República, alguém que se apresentava como “novo”, como diferente, como alguém “de fora do sistema”. O fato de ser deputado federal há 28 anos (sete mandatos), estar envolvido com o “sistema político” do país há três décadas, ter passado por meia dúzia de partidos, fazer da política uma atividade de família, eleger-se com apoio de milícias e utilizar os mandatos para dar emprego e apoio aos seus líderes... São apenas detalhes, claro, que nada diziam contra o discurso do “novo”.

Mas, afinal, o que há de “novo” na política brasileira? Vejamos algumas coisas que mudaram... A corrupção institucional, da promiscuidade com empreiteiras, foi substituída pela corrupção miúda, dos empregos fantasmas e das “rachadinhas” nos gabinetes parlamentares. O uso político e o aparelhamento das estruturas institucionais foram substituídos pelo sucateamento dos Conselhos Nacionais, pelo estrangulamento orçamentário dos órgãos de fiscalização, pelo esvaziamento das instâncias de participação democrática, pela perseguição às universidades e aos professores. O viés ideológico de atuação do BNDES no campo internacional foi substituído pela submissão grotesca e humilhante ao trumpismo e o que ele possui de pior. Os acordos pouco republicanos entre governo e empreiteiras foram substituídos pelo uso mafioso das estruturas do judiciário e do Ministério Público para fins político-eleitoreiros e projetos pessoais de poder. O descontrole das contas públicas decorrente, em parte, das políticas de combate a pobreza foi substituído por uma política aberta e escancarada de extermínio dos pobres, seja por sua eliminação física com atiradores de elite, seja por condená-los à morte pela miséria decorrente do abandono completo de Estado.

A lista poderia continuar, e tornaria o texto extenso demais para o espaço do blog. Mas acredito que a “ideia” já ficou clara. Se há algo de novo na “nova política”, não vai além do invólucro discursivo usado para embalar o que sempre houve de pior, de mais autoritário, antidemocrático e retrógrado na política e na sociedade brasileira.

De novo o atual governo não tem nada além da sanha autoritária, da miséria de ideias e projetos, da negação dos princípios básicos de civilidade e decência, do ódio ao diferente, do desprezo pelos direitos humanos, do desejo escancarado de transformar o país numa seita religiosa comandada por milícias.

A extrema esquerda sempre compreendeu a política como uma “classe” que precisa ser derrotada em nome do povo. A extrema direita a vê como uma casta que precisa ser destruída, eliminada, em nome da moral e dos bons costumes, em nome da família e dos “cidadãos de bem”. Ambas tendem, invariavelmente, a corroer as bases fundamentais da democracia. A primeira pela cegueira ideológica. A segunda pelo fanatismo moralista.

A extrema direita é moralista por definição. Seu uso dos preceitos morais sempre se dá por meio de um misto de messianismo e autoritarismo. A política e a democracia são vistas como espaço de corrupção dos valores morais, que precisam ser purificados por líderes imbuídos de inspiração e força divina. A democracia é o regime “dos outros”, e junto com os outros, precisa ser destruída para que um novo modelo seja edificado. Por isso a mistura entre política, religião e milícias é não apenas aceita, mas enaltecida.

É claro que a democracia é um regime que pode e precisa ser constantemente qualificado. É claro que a democracia brasileira está entre as que mais precisam avançar, em todos os sentidos. Mas isso não significa que qualquer mudança seja positiva, ou que não tenhamos que lutar por aquilo que ela possui de bom.

Se a opção de nova política é essa “que está aí”, não tenho qualquer dúvida de que prefiro a velha. Prefiro a política que respeita as instituições, que vê na oposição os representantes de ideias e projetos divergentes, não um inimigo que precisa ser exterminado. Prefiro a política que vê no governo eleito a oportunidade de implantar um projeto de nação, não um instrumento para perseguir quem pensa diferente e transformar o país num campo de batalha ideológico.

Prefiro a política que valoriza o debate, as negociações, as articulações em busca de acordos que viabilizem projetos, não a que usa as estruturas do Estado como instrumento de perseguição, de censura e de propagação do ódio. Prefiro a política que respeita a separação dos poderes e leva os líderes corruptos ao julgamento justo, não a que usa o Estado para dar abrigo a quadrilhas institucionalizadas, alimentadas por projetos de poder e sustentadas pelo moralismo e a miséria intelectual da população e a conivência da mídia.

Prefiro a velha política não porque ela seja imune a desvios, falhas, imperfeições, corrupção e problemas de toda ordem. Prefiro a velha política porque ela é pautada em uma institucionalidade que permite que esses problemas sejam identificados e corrigidos dentro do próprio regime. Prefiro a velha política porque, mesmo aos trancos e barrancos, ela é capaz de resistir ao messianismo moralista e à tentativa de conversão religiosa do Estado e de suas estruturas.

Enfim, prefiro a velha política porque, mesmo dando ao país governos incompetentes e medíocres, ela nos assegura a possibilidade de escolher outros nas eleições seguintes, porque não prega a destruição da democracia e de suas instituições fundamentais, nem busca o extermínio de quem propõe projetos alternativos.