quarta-feira, 26 de junho de 2019

SOCIEDADE, TECNOLOGIA E PARADOXOS


Uma das ferramentas mais importantes para a eleição de Jair Bolsonaro foi o uso intenso, sistemático e “profissional” das redes sociais. E esse uso, inclusive financiado por grandes empresários, esteve muito associado à divulgação de mentiras ou, como está na moda hoje em dia, fake news. Essas coisas nas quais as pessoas parecem gostar, cada vez mais, de acreditar.

Não sou do grupo que tem ódio às ferramentas. Acredito que os instrumentos não são os culpados quando as pessoas fazem uso inadequado deles. Não acho que a internet e as redes sociais criaram hordas de imbecis e psicopatas de sofá. Eles sempre existiram. O que as redes sociais fizeram foi dar-lhes voz, poder e visibilidade.

Em sociologia utilizamos o termo “paradoxos modernos” como instrumento analítico para pensar sobre essas contradições entre as ferramentas produzidas pela modernidade (como projeto histórico) e o uso que as pessoas fazem delas. Por exemplo, quando eleitores brasileiros se utilizam da urna eletrônica (tecnologia aplicada à democracia) para votar em um candidato cujo discurso e prática são condizentes com a política do século XIX, temos aí um “paradoxo” entre a ferramenta disponível e nossa capacidade de extrair dela o que de melhor ela pode dar em termos de “modernização”, da sociedade e da política.

Ou quando uma mãe utiliza um aplicativo de celular para localizar o endereço de uma benzedeira para seu filho que está com dor de dente. Temos mais um caso de sobreposição entre o instrumento (celular, GPS) que simboliza o auge do progresso tecnológico, e uma prática social que reflete crença em magia e poderes sobrenaturais, plenamente condizentes com a Idade Média.

Em essência, é o mesmo que ocorre quando um sujeito, do alto de sua poltrona, utiliza um smartfone conectado às redes sociais (auge do desenvolvimento tecnológico) para destilar ódio e agressividade a quem tem opiniões diferentes das suas com tamanha selvageria que daria inveja a qualquer sociedade pré-histórica.

E os “paradoxos” se multiplicam. Somos uma sociedade que paralisa porque tem excesso de meios de locomoção; uma sociedade que caminha a passos largos para a estupidez e a ignorância, apesar de possuir, como nunca antes, meios de acesso ao conhecimento; uma sociedade que nunca soube tanto sobre o ser humano e sua diversidade, mas que vem sendo tomada pela intolerância e pelo ódio; uma sociedade que planeja a ocupação de outros planetas para os próximos 200 anos, mas joga lixo pela janela do carro ajudando a destruir o planeta onde vive hoje; uma sociedade que discute o direito de robôs com inteligência artificial, mas idolatra líderes que pregam a violência e o desrespeito às leis e aos direitos do colega de trabalho que vive com valores diferentes.

Dito isso, gosto de pensar que ainda é possível imaginarmos um mundo onde essas mesmas ferramentas sejam utilizadas de forma mais responsável, mais crítica, mais “refletida”. E aqui, inevitavelmente, passamos pelo campo da educação.

Não basta que as pessoas tenham acesso às ferramentas produzidas pelo avanço da sociedade e da ciência. É preciso que avance também nossa capacidade de pensar sobre esses avanços, de refletir criticamente sobre sua produção e seus usos, como condição para extrairmos deles o que de melhor podem dar à sociedade, ao planeta e às nossas vidas.

Ora, se redes sociais podem ser utilizadas para espalhar mentiras e mudar os rumos de uma eleição, por que não poderiam ser usadas de forma mais digna, para disseminar informações corretas, para refletir mais fielmente a realidade e ajudar, de fato, as pessoas a tomarem decisões autônomas e responsáveis?

Por que as redes sociais não podem, por exemplo, servir de instrumento para divulgar a toda a sociedade o que realmente é feito nas universidades? Por que as pessoas não podem conhecer, através dessas redes, os trabalhos de pesquisa, os projetos que são desenvolvidos todos os dias por professores e estudantes? Por que grupos de aplicativos não são utilizados para divulgar links de publicações científicas com resultados de pesquisas e inovações tecnológicas?

Bem, em parte isso não acontece pelo simples fato de que as pessoas não querem conhecer essas coisas. Porque ler uma publicação científica demanda capacidade mínima de análise e compreensão. E, também, porque requer que dediquemos algum tempo à leitura. E hoje em dias as pessoas “não têm tempo”.

Afinal, se dedicarmos uma hora de nosso dia para a leitura de um artigo científico, quantas fofocas deixaremos de acessar no Facebook? Quantas notícias com apenas duas frases deixaremos de ler e “nos informar”? Quantas imagens (falsas, claro, mas isso não importa) de balbúrdia e de gente pelada deixaremos de ver? Quantas novidades sobre a infantilidade das celebridades deixaremos de acessar? Quantas fotos do Neymar deixaremos de “curtir”?

Sob vários aspectos as redes sociais são a antítese do pensamento crítico, da informação e do conhecimento. Por que são avessas à reflexão, multiplicam a desinformação e reforçam justamente as opiniões de senso comum. Nas guerras das redes sociais não importa o que você sabe, importa apenas o que você “acha”. Não importa o que você conhece ou o argumento que utiliza para defender uma posição; basta ter uma opinião e alguns palavrões para xingar quem pensa diferente.

A mediocridade sempre existiu. Mas as redes sociais lhes deram o status de “conhecimento” e de “verdade”, projetando os medíocres e dando-lhes poder que jamais teriam de outra forma.

Em referência ao filme de divulgação do nazismo “O triunfo da vontade”, muitos autores contemporâneos têm se referido ao tempo em que vivemos como o “o triunfo da mediocridade”. Acho a expressão muitíssimo apropriada, além de autoexplicativa.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

A CORROSÃO DAS DEMOCRACIAS


Cientistas políticos de vários países têm realizado pesquisas e publicado livros sobre como democracias pelo mundo estão definhando nesse início de século. Embora não tenha sido nem o primeiro, nem o único, o livro de Steven Levitski e Daniel Ziblatt, “Como as democracias morrem” (Editora Zahar), é o mais conhecido e talvez o que apresenta a análise mais ampla do quadro em questão.

Os enfoques e as abordagens são diversos, mas alguns elementos são recorrentes nessas análises. O principal deles é o argumento de que, no século XXI, as democracias “morrem” de modo diverso de como morriam no século passado.

Se no século XX os ataques contra os regimes democráticos se deram com forças militares usando tanques, com golpes baseados no uso da força e da violência, o que vemos hoje são democracias agonizando pelo definhamento de suas estruturas internas, pela destruição de suas instituições fundamentais e pelo levante do populismo de cunho fascista.

Trata-se, sob vários aspectos, da destruição das democracias pela via “pacífica”. E isso, claro, possui até mesmo uma espécie de “método”, um roteiro que, embora podendo apresentar algumas variações associadas à história, cultura e institucionalidade de cada país, é mais ou menos o mesmo pelo mundo a fora, à direita e à esquerda.

Tudo começa com um país em crise. Essa crise pode ser de ordem econômica, político-institucional, moral (questões de corrupção, por exemplo), migratória. A natureza da crise, aqui, tem importância secundária. O elemento fundamental é que essa crise dá início a movimentos sociopolíticos que captam o ressentimento do povo, que é alimentado por ela. Esse ressentimento é captado por líderes populistas e rapidamente transformado em revolta e ódio contra as “elites” do país, que invariavelmente são acusadas de ser o agente responsável por todas as mazelas existentes.

Daí surge o primeiro elemento de deterioração interna do regime: o ódio entre diferentes parcelas da população. A noção de “povo” é ressignificada e alimentada pelo ódio contra as elites nacionais, também redefinidas de forma difusa, imprecisa, justamente para que dê conta de abarcar não apenas os segmentos economicamente mais ricos, mas também – e principalmente – os políticos tradicionais, os partidos, os intelectuais, os jornalistas.

Esse movimento leva ao que alguns autores chamam de “tribalização da sociedade”, onde são criados fossos cada vez mais intransponíveis entre os diferentes grupos sociais. O ódio entre esses grupos solidifica o desejo de mudança, de um governo forte, desvinculado das instituições políticas tradicionais, capaz de “colocar as coisas no lugar” com métodos alheios às normas e fluxos institucionalizados.

Como decorrência disso, são eleitos outsiders, políticos populistas com propostas que exploram o ódio e o ressentimento da população, e com discursos que reforçam a “tribalização”. No governo, esses líderes intensificam a divisão da sociedade entre “bons” e “maus”, entre “cidadãos de bem” e “corruptos” que ameaçam a ordem nacional.

Autoritários em sua essência e em suas práticas, esses governos usam a milenar tática de “dividir para governar”, usando as estruturas de governo para destruir os adversários políticos, os quais acusam de serem os responsáveis por todos os males que afligem a população.

Assim se intensificam a censura, a perseguição, a institucionalização do ódio por meio de leis, decretos e ações governamentais, os ataques à imprensa e ao livre pensamento, a criminalização da oposição e da crítica. O governo é exercido não em nome da melhoria das condições de vida da população, mas como instrumento de vingança política usado para perseguir e aniquilar os “inimigos do povo”.

Para justificar tudo isso se recorre a Deus, a discursos messiânicos de moralidade, de nação, de heroísmo, de patriotismo. Intensifica-se o processo de negação da realidade em nome de uma ideia de pureza nacional que precisa ser resgatada. Teorias da conspiração assumem o lugar da negociação política; o obscurantismo sobrepuja a ciência e o conhecimento técnico; o messianismo ideológico se impõe sobre a gestão racional e o planejamento de longo prazo.

A narrativa de uma nação mítica que supostamente existiu no passado assume o comando, e tudo o que não se encaixa nela deve ser combatido, aniquilado. E esse combate rapidamente sai do campo das ideias e vai para o campo físico. A violência é a consequência inevitável. Violência contra opositores, contra minorias, contra quem pensa diferente.

Essa violência gradativamente assume ares de “normalidade”, e em pouco tempo o abominável é naturalizado, tido como normal. Desrespeito aos direitos humanos, tortura, violência policial, agressão a jornalistas e estudantes, supressão de direitos básicos, atropelamento da lei e dos processos legais, uso político da polícia e do judiciário. Conquistas históricas que constituem marcos civilizatórios duramente conquistados pela humanidade são rapidamente destruídas sem a mínima cerimônia.

No campo institucional, além da criminalização dos partidos políticos, da oposição e da “política tradicional”, se intensifica o processo de sabotagem e deslegitimação dos outros poderes pelo Executivo, que assume progressivamente contornos personalistas e autoritários.

O Legislativo é acusado de corporativismo e de ser contra o povo. O judiciário é sabotado e retratado como um entrave à implantação das mudanças necessárias ao país. O enfraquecimento de ambos é tomado como condição fundamental para que o Executivo possa fazer todas as mudanças necessárias, pois quanto mais poder ele tiver, mais rápida e eficientemente poderá adotar as políticas que materializam suas convicções ideológicas. Seguir a lei torna-se um problema, e o governo intensifica as ações autoritárias e de atropelamento das instituições e dos processos legais.

A essa altura, os apoiadores do governo que se sentem enganados e que votaram nele como forma de protesto e na esperança de mudanças dentro da institucionalidade, começam a deixar de apoiá-lo. Mas já é tarde. Para manter a militância ativa, o governo radicaliza cada vez mais seu discurso e suas práticas. Sua base de apoio fica cada vez menor, mas cada vez mais radical, e isso alimenta suas alucinações messiânicas, servindo de combustível para a intensificação do autoritarismo.

À medida que o apoio no parlamento, na mídia e entre a população diminui, o governo se torna cada vez mais autoritário, mais intransigente, mais paranoico e mais desconectado da realidade. Esse momento é extremamente crítico, pois ele é fundamental para definir os rumos, do governo e do regime. Se ainda houver capacidade e condições para um pacto entre os grupos de oposição, algum resquício de lucidez no interior do Legislativo e do Judiciário, uma imprensa consciente e realmente comprometida com seu papel democrático, é possível que o que ainda tenha restado das instituições democráticas consiga fazer prevalecer os princípios do regime.

Do contrário, o apelo à militância, o uso das forças policiais e de parte do judiciário cooptado pelo autoritarismo, combinado com manipulação da população e, em casos extremos, fraudes eleitorais, serão o tiro de misericórdia na democracia.

Conhecer esse processo, diagnosticar com precisão quando ele se instala e em que fase está, são condições fundamentais para aqueles que ainda veem na democracia um valor em si e acreditam que vale a pena salvá-la.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

"O PIOR REGIME, EXCETO TODOS OS OUTROS"


Nas aulas sobre regimes e sistemas de governo, costumo dizer aos meus alunos que a democracia não é uma simples questão de matemática. Ela é, acima de tudo, uma questão de método.

A questão é que a democracia não é apenas um regime onde vence “a vontade da maioria”. Se temos um regime monárquico e o rei de plantão tem apoio e aprovação de mais de metade da população, isso não é suficiente para transformar a monarquia em democracia.

O grande mérito da democracia não está em criar um sistema em que a vontade majoritária saia vencedora de processos eleitorais. Está na institucionalidade do regime que assegura à minoria, aos grupos minoritários (derrotados na eleição) e suas ideias a possibilidade de continuar existindo, de se organizar, de serem ouvidos, de serem representados e, no futuro, disputar em pé de igualdade os votos necessários para se tornar maioria.

Na teoria política as maiores obras sobre a democracia não tratam de como esse regime deva se organizar para expressar a vontade da maioria. Elas tratam do risco que representa ao regime democrático o processo de silenciamento, de repressão e de aniquilação das minorias, das ideias e das pessoas que, em um dado momento, são eleitoralmente derrotados. Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e John Rawls são bons exemplos disso.

A oposição e o direito de exercê-la são tão importantes à democracia quanto um método de escolha que assegure a tradução da vontade dos eleitores em votos, e dos desejos da maioria em governo eleito. Eles representam as ideias que naquele momento (eleição) foram derrotadas. Mas, como essa derrota pode ser determinada por uma infinidade de variáveis, é não apenas plausível, mas absolutamente salutar ao regime que essas mesmas ideias, ou variações delas, possam sobreviver e ser apresentadas como opção no pleito seguinte.

A maravilha da democracia não está no fato de produzir sempre os melhores resultados. A ascensão de regimes fascistas pelo mundo, eleitos pelo voto da maioria, são exemplos disso. A maravilha da democracia está em constituir-se como regime que assegura ao povo o direito de fazer escolhas estúpidas, conviver com elas, arrepender-se e, então, mudar de ideia e, também através do voto, redefinir os rumos de seu governo na eleição seguinte. Está também nos arranjos institucionais que não permitem ao governo eleito se valer da legitimidade das urnas para destruir os adversários e/ou a própria estrutura de funcionamento da democracia.

Por isso a beleza da democracia está em assegurar que qualquer ideia, por mais estranha e inviável que possa parecer ao surgir, tenha o direito de se expressar, de se difundir, de disputar as mentes dos cidadãos e de se tornar, no futuro, a ideia dominante – ou majoritária, para ficarmos nos termos eleitorais.

Mas, para que isso ocorra, os grupos minoritários, os partidos derrotados nas eleições e as ideias que eles representam, precisam ter assegurado seu espaço de atuação. Não são apenas fraudes eleitorais e fake news que ameaçam as democracias contemporâneas. Suas maiores ameaças vêm do uso das estruturas de governo para aniquilar a oposição, o pensamento divergente, as vozes dissonantes.

O sucesso eleitoral dá aos vencedores o direito de implantar, dentro das regras do jogo, suas ideias e as propostas pelas quais se elegeram. Mas não lhes dá o direito de aniquilar os derrotados, nem de usar as estruturas e as prerrogativas do governo para persegui-los e reprimir seu direito de expressar a divergência.

O espírito da democracia reside no direito de discutir, de debater, de pensar diferente, de expressar divergência, de fazer oposição, de apontar falhas e limites do governo, de apresentar uma ideia contrária e disputar a simpatia e o apoio dos eleitores.

O Estado de Direito e não o voto é o verdadeiro coração da democracia. E a democracia dá sinais de insuficiência cardíaca quando o governo de plantão trata a oposição como inimiga, dele e do povo; quando usa as estruturas do governo para perseguir e destruir o pensamento divergente; quando tenta atropelar as processualidades institucionais para governar acima das leis ou contra elas, amparado pela “legitimidade das urnas”; quando confunde os desejos de seu núcleo ideológico com as necessidades do país e culpa a oposição por todo o mal existente no mundo; quando usa a discricionariedade orçamentária para sufocar instituições e espaços sociais onde o pensamento divergente se manifesta.

Não é preciso um golpe militar para destruir a democracia. Não é preciso deixar de realizar eleições para sufocá-la. A democracia pode ser corroída por dentro, e isso pode se dar sem qualquer interrupção no calendário de eleições, e até mesmo com o apoio popular. Basta que as instituições democráticas sejam deterioradas; que o Estado de Direito seja usurpado em nome da “ordem”; que a liberdade de expressão seja massacrada; que o direito de ter e manifestar ideias divergentes seja criminalizado; que o autoritarismo seja legitimado em nome de Deus e da família; que o conhecimento técnico e a ciência sejam negligenciados em nome do obscurantismo e da ignorância; que o governo seja exercido para perseguir a oposição em vez de buscar o bem do país.

A democracia é uma invenção humana bastante jovem. Ela nem sempre existiu, e certamente nem sempre existirá. Mas será uma tragédia histórica se o espanto e o assombro nos paralisar e nos fizer aceitar pacificamente a sua destruição pelo ódio, pelo ressentimento e pela mediocridade.


segunda-feira, 3 de junho de 2019

FASCISMO, DE ONTEM E DE HOJE


Multiplicam-se, nos mais diversos meios, análises que apontam para o caráter fascista do governo Bolsonaro. Artigos, crônicas, ensaios, entrevistas. Como nunca na história da análise política do Brasil, parece haver um consenso de que vivemos um período nebuloso de nossa democracia, seriamente ameaçada pelo autoritarismo do atual governo e pela corrosão de suas instituições fundamentais.

Os defensores do governo Bolsonaro (sim, eles ainda existem) acusam tais análises de serem exageradas, coisa de comunista, da imprensa contrária ao governo e de intelectuais propagadores do marxismo cultural.

Como vivemos em um tempo em que o óbvio precisa ser dito e demonstrado todos os dias, talvez seja bom (re)lembrar alguns processos que caracterizaram o nazismo na Alemanha, a fim de fomentar análises comparativas e, com isso, pensarmos sobre o fantasma do fascismo a partir de elementos históricos concretos. Se nosso objetivo é evitar repetir os erros que a humanidade cometeu em sua história, é revisitando essa história que encontraremos os elementos para compreender as tentações que ameaçam nosso presente.

A grande alucinação coletiva que justificou o genocídio contra os judeus e, em geral, todas as ações do governo de Adolf Hitler, não surgiu de repente na Alemanha. As bases do nazismo remetem à segunda metade do século XVIII, à unificação da Alemanha e, de modo especial, à Primeira Guerra Mundial.

Na Primeira Guerra Mundial a Alemanha não foi apenas derrotada. Ela foi humilhada, e os alemães sobreviventes herdaram um país destruído, economicamente em frangalhos, culturalmente esfacelado, socialmente confuso e politicamente desorientado. Ressentidos e com desejo de vingança, os alemães precisavam de um alvo para atribuir a culpa pelo que estavam passando.

Em situações desse tipo, sempre surgem as tentações por explicações fáceis, por modelos que simplifiquem a realidade e lhe deem um sentido imediato. De repente surge uma narrativa, tão simplória quanto acessível, na qual os judeus e os comunistas (sim, os comunistas) apareciam como culpados pela derrocada do país, mancomunados que estavam para controlar o governo e os bancos e enriquecer às custas do povo alemão.

Ora, depois de disseminada uma explicação simplista para os problemas, o segundo passo é o surgimento, ainda como decorrência natural, de uma solução também simples: a eliminação dos judeus e dos comunistas. Afinal, os alemães não são apenas fisicamente superiores como raça, eles são também superiores no campo moral. Eles são mais dignos, são mais trabalhadores, são mais respeitáveis, são mais honestos. São, enfim, uma raça superior em todos os sentidos, e se a Alemanha enquanto nação está arruinada, é porque teve seu comando nas mãos de pessoas que não representavam o ideal de pureza e superioridade do povo alemão.

A eliminação dos judeus e dos comunistas, portanto, surge como solução geral para todos os males da Alemanha, pois ela extinguiria a origem de todos os problemas: o fato de a Alemanha ter sido tomada por representantes de raças fisicamente inferiores e moralmente degeneradas.

(A essa altura o raro leitor já estará percebendo as semelhanças...).

Para implantar tal solução, é preciso um governo forte e profundamente ligado aos ideais mais elementares do nacionalismo Alemão. E assim surge Hitler, veterano da Primeira Guerra, uma caricatura dos ideais de passado e de nação que os alemães anseiam por resgatar.

O início do movimento nazista não é bélico, é ideológico. Desenvolve-se todo um arcabouço simbólico, uma mitologia da Alemanha, de seu passado, de seu povo. Até mesmo o mito da criação é reinventado, com o jardim do Éden sendo transfigurado em uma versão nórdica do conto bíblico, como um local gelado, coberto de neve e inspirado na mitologia escandinava.

O povo alemão é retratado como o mais antigo da terra. O mito da raça ariana é então inventado. As origens arianas da Alemanha se misturam com a lenda do deus Thor, e até mesmo seu martelo mágico é retratado como uma ferramenta tecnológica, resultado do avanço e da inteligência da raça ariana, cuja origem remete a deuses de cabelos louros e olhos azuis.

A doutrina nazista cria sua própria religião e seus próprios rituais. Ecoando Nietzsche, o cristianismo é retratado como responsável pela degeneração moral da sociedade, especialmente por sua defesa dos fracos e por pregar a igualdade de todos diante de Deus. Ele precisa, portanto, ser substituído por uma religião nova, baseada na superioridade da raça ariana.

É claro que essa mitologia é prontamente contestada por pesquisadores, historiadores, antropólogos, arqueólogos, filósofos. E também é claro que esses pesquisadores rapidamente são transformados em inimigos do povo alemão. As universidades e centros de pesquisa onde eles trabalham são atacadas, acusadas de estarem dominadas pelos comunistas e pelos judeus, e de mentirem sobre a história e o passado da Alemanha. Cientistas e filósofos são perseguidos, assassinados, e muitos só sobrevivem por que conseguem fugir para outros países, em especial os Estados Unidos.

Veja que estamos falando de um período em que Einstein desenvolve sua Teoria Geral da Relatividade. Ora, Einstein, não esqueçamos, é judeu. Portanto, sua teoria precisa ser negada pelo nazismo. Assim o governo Alemão, além de perseguir Einstein, toma como seu contraponto oficial um cosmólogo famoso por teorias bizarras, chamado Hans Horbiger. Ele então apresenta a “Teoria do Gelo Eterno”, segundo a qual o universo foi criado pela colisão de dois gigantescos pedaços de gelo, cuja fragmentação deu origem aos planetas, estrelas e galáxias. Ainda segundo essa teoria, o próprio sol seria uma imensa bola de gelo. E o gelo não é tomado como a origem do universo por acaso. Branco, ele simboliza a pureza, assim como o povo alemão. Essa passa a ser a teoria oficial na Alemanha sobre a origem do universo.

O governo alemão recria todo um sistema de crenças e de compreensão do mundo baseado na negação da ciência. Até mesmo no exército os cientistas são substituídos por charlatões de toda ordem. Missões são enviadas ao redor do mundo para encontrar e resgatar a arca da aliança e o santo graal. Departamentos são criados pelo governo para encontrar alienígenas e roubar sua tecnologia. E as consequências não tardam a chegar.

Em 1941 Hitler decide invadir a URSS. Os charlatões responsáveis pelas previsões climáticas dentro do exército preveem que o inverno daquele ano será ameno, e os alemães decidem marchar rumo a Moscou, passando por Leningrado, no início da estação fria. Para avançar com mais rapidez, os soldados levam pouco agasalho. O problema é que o ano de 1941 teve o inverno mais rigoroso em décadas. Quase metade dos soldados alemães morre congelada, e os que sobrevivem não conseguem se deslocar. A invasão da URSS torna-se o maior fiasco militar do nazismo, e marca o início de sua derrocada na Segunda Guerra.

Pois é, raro leitor. A essa altura você já deve ter feito alguns paralelos com nosso tempo e nosso governo. Ódio aos comunistas (reais e imaginários); perseguição às universidades e aos professores; obsessão por uma versão tosca e distorcida da história; negação da ciência e dos cientistas em nome de mitologias, de conhecimento baseado no senso comum e na “sabedoria” das redes sociais; adoção de um astrólogo (vejam só!) como guia intelectual; até mesmo a defesa da terra plana é ressuscitada como teoria válida, coisa que nem mesmo Hans Horbiger ousou afirmar.

As semelhanças se acumulam, e se tornam cada vez mais assustadoras. Para os interessados, vale a pena pesquisar sobre o assunto, muito bem retratado em livros, artigos, documentários.

A base do nazismo foi uma tendência cultural ao ocultismo combinada com um ressentimento acumulado e um profundo desejo de vingança do povo alemão contra aqueles que ele acreditava ser os responsáveis pelo seu flagelo: os judeus e os comunistas.

No Brasil de hoje os comunistas são também os principais responsáveis por todas as mazelas do país, e o lugar dos judeus, por aqui, é ocupado pelos professores, pelos cientistas, pelos filósofos. De repente a corrupção que afundou o país tornou-se uma invenção dos "comunistas", e só depois que esses forem destruídos pelos "cidadãos de bem" é que o país poderá voltar a crescer.

Basta que os "cidadãos de bem", na pessoa dos heróis da pátria, como o mito presidente e o ministro super-homem, sejam deixados em paz para fazer o que lhes parece certo, e o país finalmente será a potência que os comunistas impediram que fosse.

Cientistas, filósofos e analistas que tecem críticas ao governo e ao seu modo de agir não passam de inimigos do povo, conspiradores mancomunados com os judeus que são donos dos bancos e da imprensa (nas palavras do Ministro da Educação) e que querem disseminar o marxismo cultural para destruir a família e pregar o homossexualismo.

Em um futuro não muito distante o mundo olhará para o período em que vivemos hoje e ficará impressionado com as bizarrices as quais fomos capazes de nos submeter. Será motivo de espanto nossa capacidade: de negar o óbvio em nome da imbecilidade; de combater a ciência com o charlatanismo; de negar a realidade com fake news; de corroer a democracia com o messianismo; de destruir décadas de conquistas em meses de alucinação.

Contudo, quando no futuro as pessoas olharem para o que vivemos hoje, elas não verão nada de novo. Verão uma repetição tosca, uma caricatura dos piores momentos da história humana. Por que a história humana é feita de idas e vindas, de repetições e de imitações. E negar o que fomos e o que fizemos é o melhor caminho para voltarmos a ser e a fazer tudo de novo