Cientistas políticos
de vários países têm realizado pesquisas e publicado livros sobre como
democracias pelo mundo estão definhando nesse início de século. Embora não
tenha sido nem o primeiro, nem o único, o livro de Steven Levitski e Daniel
Ziblatt, “Como as democracias morrem”
(Editora Zahar), é o mais conhecido e talvez o que apresenta a análise mais
ampla do quadro em questão.
Os enfoques e as
abordagens são diversos, mas alguns elementos são recorrentes nessas análises.
O principal deles é o argumento de que, no século XXI, as democracias “morrem”
de modo diverso de como morriam no século passado.
Se no século XX os
ataques contra os regimes democráticos se deram com forças militares usando
tanques, com golpes baseados no uso da força e da violência, o que vemos hoje
são democracias agonizando pelo definhamento de suas estruturas internas, pela
destruição de suas instituições fundamentais e pelo levante do populismo de
cunho fascista.
Trata-se, sob vários
aspectos, da destruição das democracias pela via “pacífica”. E isso, claro,
possui até mesmo uma espécie de “método”, um roteiro que, embora podendo apresentar
algumas variações associadas à história, cultura e institucionalidade de cada
país, é mais ou menos o mesmo pelo mundo a fora, à direita e à esquerda.
Tudo começa com um
país em crise. Essa crise pode ser de ordem econômica, político-institucional, moral
(questões de corrupção, por exemplo), migratória. A natureza da crise, aqui,
tem importância secundária. O elemento fundamental é que essa crise dá início a
movimentos sociopolíticos que captam o ressentimento do povo, que é alimentado
por ela. Esse ressentimento é captado por líderes populistas e rapidamente
transformado em revolta e ódio contra as “elites” do país, que invariavelmente
são acusadas de ser o agente responsável por todas as mazelas existentes.
Daí surge o primeiro
elemento de deterioração interna do regime: o ódio entre diferentes parcelas da
população. A noção de “povo” é ressignificada e alimentada pelo ódio contra as
elites nacionais, também redefinidas de forma difusa, imprecisa, justamente
para que dê conta de abarcar não apenas os segmentos economicamente mais ricos,
mas também – e principalmente – os políticos tradicionais, os partidos, os
intelectuais, os jornalistas.
Esse movimento leva
ao que alguns autores chamam de “tribalização da sociedade”, onde são criados
fossos cada vez mais intransponíveis entre os diferentes grupos sociais. O ódio
entre esses grupos solidifica o desejo de mudança, de um governo forte,
desvinculado das instituições políticas tradicionais, capaz de “colocar as
coisas no lugar” com métodos alheios às normas e fluxos institucionalizados.
Como decorrência
disso, são eleitos outsiders,
políticos populistas com propostas que exploram o ódio e o ressentimento da
população, e com discursos que reforçam a “tribalização”. No governo, esses
líderes intensificam a divisão da sociedade entre “bons” e “maus”, entre
“cidadãos de bem” e “corruptos” que ameaçam a ordem nacional.
Autoritários em
sua essência e em suas práticas, esses governos usam a milenar tática de “dividir
para governar”, usando as estruturas de governo para destruir os adversários
políticos, os quais acusam de serem os responsáveis por todos os males que
afligem a população.
Assim se intensificam
a censura, a perseguição, a institucionalização do ódio por meio de leis,
decretos e ações governamentais, os ataques à imprensa e ao livre pensamento, a
criminalização da oposição e da crítica. O governo é exercido não em nome da
melhoria das condições de vida da população, mas como instrumento de vingança
política usado para perseguir e aniquilar os “inimigos do povo”.
Para justificar tudo
isso se recorre a Deus, a discursos messiânicos de moralidade, de nação, de
heroísmo, de patriotismo. Intensifica-se o processo de negação da realidade em
nome de uma ideia de pureza nacional que precisa ser resgatada. Teorias da
conspiração assumem o lugar da negociação política; o obscurantismo sobrepuja a
ciência e o conhecimento técnico; o messianismo ideológico se impõe sobre a
gestão racional e o planejamento de longo prazo.
A narrativa de uma
nação mítica que supostamente existiu no passado assume o comando, e tudo o que
não se encaixa nela deve ser combatido, aniquilado. E esse combate rapidamente
sai do campo das ideias e vai para o campo físico. A violência é a consequência
inevitável. Violência contra opositores, contra minorias, contra quem pensa
diferente.
Essa violência
gradativamente assume ares de “normalidade”, e em pouco tempo o abominável é
naturalizado, tido como normal. Desrespeito aos direitos humanos, tortura,
violência policial, agressão a jornalistas e estudantes, supressão de direitos
básicos, atropelamento da lei e dos processos legais, uso político da polícia e
do judiciário. Conquistas históricas que constituem marcos civilizatórios
duramente conquistados pela humanidade são rapidamente destruídas sem a mínima
cerimônia.
No campo
institucional, além da criminalização dos partidos políticos, da oposição e da
“política tradicional”, se intensifica o processo de sabotagem e deslegitimação
dos outros poderes pelo Executivo, que assume progressivamente contornos
personalistas e autoritários.
O Legislativo é
acusado de corporativismo e de ser contra o povo. O judiciário é sabotado e
retratado como um entrave à implantação das mudanças necessárias ao país. O
enfraquecimento de ambos é tomado como condição fundamental para que o
Executivo possa fazer todas as mudanças necessárias, pois quanto mais poder ele
tiver, mais rápida e eficientemente poderá adotar as políticas que materializam
suas convicções ideológicas. Seguir a lei torna-se um problema, e o governo
intensifica as ações autoritárias e de atropelamento das instituições e dos
processos legais.
A essa altura, os
apoiadores do governo que se sentem enganados e que votaram nele como forma de
protesto e na esperança de mudanças dentro da institucionalidade, começam a
deixar de apoiá-lo. Mas já é tarde. Para manter a militância ativa, o governo
radicaliza cada vez mais seu discurso e suas práticas. Sua base de apoio fica
cada vez menor, mas cada vez mais radical, e isso alimenta suas alucinações
messiânicas, servindo de combustível para a intensificação do autoritarismo.
À medida que o apoio
no parlamento, na mídia e entre a população diminui, o governo se torna cada
vez mais autoritário, mais intransigente, mais paranoico e mais desconectado da
realidade. Esse momento é extremamente crítico, pois ele é fundamental para
definir os rumos, do governo e do regime. Se ainda houver capacidade e
condições para um pacto entre os grupos de oposição, algum resquício de lucidez
no interior do Legislativo e do Judiciário, uma imprensa consciente e realmente
comprometida com seu papel democrático, é possível que o que ainda tenha
restado das instituições democráticas consiga fazer prevalecer os princípios do
regime.
Do contrário, o apelo
à militância, o uso das forças policiais e de parte do judiciário cooptado pelo
autoritarismo, combinado com manipulação da população e, em casos extremos,
fraudes eleitorais, serão o tiro de misericórdia na democracia.
Conhecer esse
processo, diagnosticar com precisão quando ele se instala e em que fase está,
são condições fundamentais para aqueles que ainda veem na democracia um valor
em si e acreditam que vale a pena salvá-la.
Nenhum comentário:
Postar um comentário