segunda-feira, 17 de junho de 2019

A CORROSÃO DAS DEMOCRACIAS


Cientistas políticos de vários países têm realizado pesquisas e publicado livros sobre como democracias pelo mundo estão definhando nesse início de século. Embora não tenha sido nem o primeiro, nem o único, o livro de Steven Levitski e Daniel Ziblatt, “Como as democracias morrem” (Editora Zahar), é o mais conhecido e talvez o que apresenta a análise mais ampla do quadro em questão.

Os enfoques e as abordagens são diversos, mas alguns elementos são recorrentes nessas análises. O principal deles é o argumento de que, no século XXI, as democracias “morrem” de modo diverso de como morriam no século passado.

Se no século XX os ataques contra os regimes democráticos se deram com forças militares usando tanques, com golpes baseados no uso da força e da violência, o que vemos hoje são democracias agonizando pelo definhamento de suas estruturas internas, pela destruição de suas instituições fundamentais e pelo levante do populismo de cunho fascista.

Trata-se, sob vários aspectos, da destruição das democracias pela via “pacífica”. E isso, claro, possui até mesmo uma espécie de “método”, um roteiro que, embora podendo apresentar algumas variações associadas à história, cultura e institucionalidade de cada país, é mais ou menos o mesmo pelo mundo a fora, à direita e à esquerda.

Tudo começa com um país em crise. Essa crise pode ser de ordem econômica, político-institucional, moral (questões de corrupção, por exemplo), migratória. A natureza da crise, aqui, tem importância secundária. O elemento fundamental é que essa crise dá início a movimentos sociopolíticos que captam o ressentimento do povo, que é alimentado por ela. Esse ressentimento é captado por líderes populistas e rapidamente transformado em revolta e ódio contra as “elites” do país, que invariavelmente são acusadas de ser o agente responsável por todas as mazelas existentes.

Daí surge o primeiro elemento de deterioração interna do regime: o ódio entre diferentes parcelas da população. A noção de “povo” é ressignificada e alimentada pelo ódio contra as elites nacionais, também redefinidas de forma difusa, imprecisa, justamente para que dê conta de abarcar não apenas os segmentos economicamente mais ricos, mas também – e principalmente – os políticos tradicionais, os partidos, os intelectuais, os jornalistas.

Esse movimento leva ao que alguns autores chamam de “tribalização da sociedade”, onde são criados fossos cada vez mais intransponíveis entre os diferentes grupos sociais. O ódio entre esses grupos solidifica o desejo de mudança, de um governo forte, desvinculado das instituições políticas tradicionais, capaz de “colocar as coisas no lugar” com métodos alheios às normas e fluxos institucionalizados.

Como decorrência disso, são eleitos outsiders, políticos populistas com propostas que exploram o ódio e o ressentimento da população, e com discursos que reforçam a “tribalização”. No governo, esses líderes intensificam a divisão da sociedade entre “bons” e “maus”, entre “cidadãos de bem” e “corruptos” que ameaçam a ordem nacional.

Autoritários em sua essência e em suas práticas, esses governos usam a milenar tática de “dividir para governar”, usando as estruturas de governo para destruir os adversários políticos, os quais acusam de serem os responsáveis por todos os males que afligem a população.

Assim se intensificam a censura, a perseguição, a institucionalização do ódio por meio de leis, decretos e ações governamentais, os ataques à imprensa e ao livre pensamento, a criminalização da oposição e da crítica. O governo é exercido não em nome da melhoria das condições de vida da população, mas como instrumento de vingança política usado para perseguir e aniquilar os “inimigos do povo”.

Para justificar tudo isso se recorre a Deus, a discursos messiânicos de moralidade, de nação, de heroísmo, de patriotismo. Intensifica-se o processo de negação da realidade em nome de uma ideia de pureza nacional que precisa ser resgatada. Teorias da conspiração assumem o lugar da negociação política; o obscurantismo sobrepuja a ciência e o conhecimento técnico; o messianismo ideológico se impõe sobre a gestão racional e o planejamento de longo prazo.

A narrativa de uma nação mítica que supostamente existiu no passado assume o comando, e tudo o que não se encaixa nela deve ser combatido, aniquilado. E esse combate rapidamente sai do campo das ideias e vai para o campo físico. A violência é a consequência inevitável. Violência contra opositores, contra minorias, contra quem pensa diferente.

Essa violência gradativamente assume ares de “normalidade”, e em pouco tempo o abominável é naturalizado, tido como normal. Desrespeito aos direitos humanos, tortura, violência policial, agressão a jornalistas e estudantes, supressão de direitos básicos, atropelamento da lei e dos processos legais, uso político da polícia e do judiciário. Conquistas históricas que constituem marcos civilizatórios duramente conquistados pela humanidade são rapidamente destruídas sem a mínima cerimônia.

No campo institucional, além da criminalização dos partidos políticos, da oposição e da “política tradicional”, se intensifica o processo de sabotagem e deslegitimação dos outros poderes pelo Executivo, que assume progressivamente contornos personalistas e autoritários.

O Legislativo é acusado de corporativismo e de ser contra o povo. O judiciário é sabotado e retratado como um entrave à implantação das mudanças necessárias ao país. O enfraquecimento de ambos é tomado como condição fundamental para que o Executivo possa fazer todas as mudanças necessárias, pois quanto mais poder ele tiver, mais rápida e eficientemente poderá adotar as políticas que materializam suas convicções ideológicas. Seguir a lei torna-se um problema, e o governo intensifica as ações autoritárias e de atropelamento das instituições e dos processos legais.

A essa altura, os apoiadores do governo que se sentem enganados e que votaram nele como forma de protesto e na esperança de mudanças dentro da institucionalidade, começam a deixar de apoiá-lo. Mas já é tarde. Para manter a militância ativa, o governo radicaliza cada vez mais seu discurso e suas práticas. Sua base de apoio fica cada vez menor, mas cada vez mais radical, e isso alimenta suas alucinações messiânicas, servindo de combustível para a intensificação do autoritarismo.

À medida que o apoio no parlamento, na mídia e entre a população diminui, o governo se torna cada vez mais autoritário, mais intransigente, mais paranoico e mais desconectado da realidade. Esse momento é extremamente crítico, pois ele é fundamental para definir os rumos, do governo e do regime. Se ainda houver capacidade e condições para um pacto entre os grupos de oposição, algum resquício de lucidez no interior do Legislativo e do Judiciário, uma imprensa consciente e realmente comprometida com seu papel democrático, é possível que o que ainda tenha restado das instituições democráticas consiga fazer prevalecer os princípios do regime.

Do contrário, o apelo à militância, o uso das forças policiais e de parte do judiciário cooptado pelo autoritarismo, combinado com manipulação da população e, em casos extremos, fraudes eleitorais, serão o tiro de misericórdia na democracia.

Conhecer esse processo, diagnosticar com precisão quando ele se instala e em que fase está, são condições fundamentais para aqueles que ainda veem na democracia um valor em si e acreditam que vale a pena salvá-la.

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