segunda-feira, 3 de junho de 2019

FASCISMO, DE ONTEM E DE HOJE


Multiplicam-se, nos mais diversos meios, análises que apontam para o caráter fascista do governo Bolsonaro. Artigos, crônicas, ensaios, entrevistas. Como nunca na história da análise política do Brasil, parece haver um consenso de que vivemos um período nebuloso de nossa democracia, seriamente ameaçada pelo autoritarismo do atual governo e pela corrosão de suas instituições fundamentais.

Os defensores do governo Bolsonaro (sim, eles ainda existem) acusam tais análises de serem exageradas, coisa de comunista, da imprensa contrária ao governo e de intelectuais propagadores do marxismo cultural.

Como vivemos em um tempo em que o óbvio precisa ser dito e demonstrado todos os dias, talvez seja bom (re)lembrar alguns processos que caracterizaram o nazismo na Alemanha, a fim de fomentar análises comparativas e, com isso, pensarmos sobre o fantasma do fascismo a partir de elementos históricos concretos. Se nosso objetivo é evitar repetir os erros que a humanidade cometeu em sua história, é revisitando essa história que encontraremos os elementos para compreender as tentações que ameaçam nosso presente.

A grande alucinação coletiva que justificou o genocídio contra os judeus e, em geral, todas as ações do governo de Adolf Hitler, não surgiu de repente na Alemanha. As bases do nazismo remetem à segunda metade do século XVIII, à unificação da Alemanha e, de modo especial, à Primeira Guerra Mundial.

Na Primeira Guerra Mundial a Alemanha não foi apenas derrotada. Ela foi humilhada, e os alemães sobreviventes herdaram um país destruído, economicamente em frangalhos, culturalmente esfacelado, socialmente confuso e politicamente desorientado. Ressentidos e com desejo de vingança, os alemães precisavam de um alvo para atribuir a culpa pelo que estavam passando.

Em situações desse tipo, sempre surgem as tentações por explicações fáceis, por modelos que simplifiquem a realidade e lhe deem um sentido imediato. De repente surge uma narrativa, tão simplória quanto acessível, na qual os judeus e os comunistas (sim, os comunistas) apareciam como culpados pela derrocada do país, mancomunados que estavam para controlar o governo e os bancos e enriquecer às custas do povo alemão.

Ora, depois de disseminada uma explicação simplista para os problemas, o segundo passo é o surgimento, ainda como decorrência natural, de uma solução também simples: a eliminação dos judeus e dos comunistas. Afinal, os alemães não são apenas fisicamente superiores como raça, eles são também superiores no campo moral. Eles são mais dignos, são mais trabalhadores, são mais respeitáveis, são mais honestos. São, enfim, uma raça superior em todos os sentidos, e se a Alemanha enquanto nação está arruinada, é porque teve seu comando nas mãos de pessoas que não representavam o ideal de pureza e superioridade do povo alemão.

A eliminação dos judeus e dos comunistas, portanto, surge como solução geral para todos os males da Alemanha, pois ela extinguiria a origem de todos os problemas: o fato de a Alemanha ter sido tomada por representantes de raças fisicamente inferiores e moralmente degeneradas.

(A essa altura o raro leitor já estará percebendo as semelhanças...).

Para implantar tal solução, é preciso um governo forte e profundamente ligado aos ideais mais elementares do nacionalismo Alemão. E assim surge Hitler, veterano da Primeira Guerra, uma caricatura dos ideais de passado e de nação que os alemães anseiam por resgatar.

O início do movimento nazista não é bélico, é ideológico. Desenvolve-se todo um arcabouço simbólico, uma mitologia da Alemanha, de seu passado, de seu povo. Até mesmo o mito da criação é reinventado, com o jardim do Éden sendo transfigurado em uma versão nórdica do conto bíblico, como um local gelado, coberto de neve e inspirado na mitologia escandinava.

O povo alemão é retratado como o mais antigo da terra. O mito da raça ariana é então inventado. As origens arianas da Alemanha se misturam com a lenda do deus Thor, e até mesmo seu martelo mágico é retratado como uma ferramenta tecnológica, resultado do avanço e da inteligência da raça ariana, cuja origem remete a deuses de cabelos louros e olhos azuis.

A doutrina nazista cria sua própria religião e seus próprios rituais. Ecoando Nietzsche, o cristianismo é retratado como responsável pela degeneração moral da sociedade, especialmente por sua defesa dos fracos e por pregar a igualdade de todos diante de Deus. Ele precisa, portanto, ser substituído por uma religião nova, baseada na superioridade da raça ariana.

É claro que essa mitologia é prontamente contestada por pesquisadores, historiadores, antropólogos, arqueólogos, filósofos. E também é claro que esses pesquisadores rapidamente são transformados em inimigos do povo alemão. As universidades e centros de pesquisa onde eles trabalham são atacadas, acusadas de estarem dominadas pelos comunistas e pelos judeus, e de mentirem sobre a história e o passado da Alemanha. Cientistas e filósofos são perseguidos, assassinados, e muitos só sobrevivem por que conseguem fugir para outros países, em especial os Estados Unidos.

Veja que estamos falando de um período em que Einstein desenvolve sua Teoria Geral da Relatividade. Ora, Einstein, não esqueçamos, é judeu. Portanto, sua teoria precisa ser negada pelo nazismo. Assim o governo Alemão, além de perseguir Einstein, toma como seu contraponto oficial um cosmólogo famoso por teorias bizarras, chamado Hans Horbiger. Ele então apresenta a “Teoria do Gelo Eterno”, segundo a qual o universo foi criado pela colisão de dois gigantescos pedaços de gelo, cuja fragmentação deu origem aos planetas, estrelas e galáxias. Ainda segundo essa teoria, o próprio sol seria uma imensa bola de gelo. E o gelo não é tomado como a origem do universo por acaso. Branco, ele simboliza a pureza, assim como o povo alemão. Essa passa a ser a teoria oficial na Alemanha sobre a origem do universo.

O governo alemão recria todo um sistema de crenças e de compreensão do mundo baseado na negação da ciência. Até mesmo no exército os cientistas são substituídos por charlatões de toda ordem. Missões são enviadas ao redor do mundo para encontrar e resgatar a arca da aliança e o santo graal. Departamentos são criados pelo governo para encontrar alienígenas e roubar sua tecnologia. E as consequências não tardam a chegar.

Em 1941 Hitler decide invadir a URSS. Os charlatões responsáveis pelas previsões climáticas dentro do exército preveem que o inverno daquele ano será ameno, e os alemães decidem marchar rumo a Moscou, passando por Leningrado, no início da estação fria. Para avançar com mais rapidez, os soldados levam pouco agasalho. O problema é que o ano de 1941 teve o inverno mais rigoroso em décadas. Quase metade dos soldados alemães morre congelada, e os que sobrevivem não conseguem se deslocar. A invasão da URSS torna-se o maior fiasco militar do nazismo, e marca o início de sua derrocada na Segunda Guerra.

Pois é, raro leitor. A essa altura você já deve ter feito alguns paralelos com nosso tempo e nosso governo. Ódio aos comunistas (reais e imaginários); perseguição às universidades e aos professores; obsessão por uma versão tosca e distorcida da história; negação da ciência e dos cientistas em nome de mitologias, de conhecimento baseado no senso comum e na “sabedoria” das redes sociais; adoção de um astrólogo (vejam só!) como guia intelectual; até mesmo a defesa da terra plana é ressuscitada como teoria válida, coisa que nem mesmo Hans Horbiger ousou afirmar.

As semelhanças se acumulam, e se tornam cada vez mais assustadoras. Para os interessados, vale a pena pesquisar sobre o assunto, muito bem retratado em livros, artigos, documentários.

A base do nazismo foi uma tendência cultural ao ocultismo combinada com um ressentimento acumulado e um profundo desejo de vingança do povo alemão contra aqueles que ele acreditava ser os responsáveis pelo seu flagelo: os judeus e os comunistas.

No Brasil de hoje os comunistas são também os principais responsáveis por todas as mazelas do país, e o lugar dos judeus, por aqui, é ocupado pelos professores, pelos cientistas, pelos filósofos. De repente a corrupção que afundou o país tornou-se uma invenção dos "comunistas", e só depois que esses forem destruídos pelos "cidadãos de bem" é que o país poderá voltar a crescer.

Basta que os "cidadãos de bem", na pessoa dos heróis da pátria, como o mito presidente e o ministro super-homem, sejam deixados em paz para fazer o que lhes parece certo, e o país finalmente será a potência que os comunistas impediram que fosse.

Cientistas, filósofos e analistas que tecem críticas ao governo e ao seu modo de agir não passam de inimigos do povo, conspiradores mancomunados com os judeus que são donos dos bancos e da imprensa (nas palavras do Ministro da Educação) e que querem disseminar o marxismo cultural para destruir a família e pregar o homossexualismo.

Em um futuro não muito distante o mundo olhará para o período em que vivemos hoje e ficará impressionado com as bizarrices as quais fomos capazes de nos submeter. Será motivo de espanto nossa capacidade: de negar o óbvio em nome da imbecilidade; de combater a ciência com o charlatanismo; de negar a realidade com fake news; de corroer a democracia com o messianismo; de destruir décadas de conquistas em meses de alucinação.

Contudo, quando no futuro as pessoas olharem para o que vivemos hoje, elas não verão nada de novo. Verão uma repetição tosca, uma caricatura dos piores momentos da história humana. Por que a história humana é feita de idas e vindas, de repetições e de imitações. E negar o que fomos e o que fizemos é o melhor caminho para voltarmos a ser e a fazer tudo de novo

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