Multiplicam-se, nos
mais diversos meios, análises que apontam para o caráter fascista do governo
Bolsonaro. Artigos, crônicas, ensaios, entrevistas. Como nunca na história da
análise política do Brasil, parece haver um consenso de que vivemos um período
nebuloso de nossa democracia, seriamente ameaçada pelo autoritarismo do atual
governo e pela corrosão de suas instituições fundamentais.
Os defensores do
governo Bolsonaro (sim, eles ainda existem) acusam tais análises de serem
exageradas, coisa de comunista, da imprensa contrária ao governo e de
intelectuais propagadores do marxismo cultural.
Como vivemos em um
tempo em que o óbvio precisa ser dito e demonstrado todos os dias, talvez seja
bom (re)lembrar alguns processos que caracterizaram o nazismo na Alemanha, a
fim de fomentar análises comparativas e, com isso, pensarmos sobre o fantasma
do fascismo a partir de elementos históricos concretos. Se nosso objetivo é
evitar repetir os erros que a humanidade cometeu em sua história, é revisitando
essa história que encontraremos os elementos para compreender as tentações que
ameaçam nosso presente.
A grande alucinação
coletiva que justificou o genocídio contra os judeus e, em geral, todas as
ações do governo de Adolf Hitler, não surgiu de repente na Alemanha. As bases
do nazismo remetem à segunda metade do século XVIII, à unificação da Alemanha
e, de modo especial, à Primeira Guerra Mundial.
Na Primeira Guerra
Mundial a Alemanha não foi apenas derrotada. Ela foi humilhada, e os alemães
sobreviventes herdaram um país destruído, economicamente em frangalhos,
culturalmente esfacelado, socialmente confuso e politicamente desorientado.
Ressentidos e com desejo de vingança, os alemães precisavam de um alvo para
atribuir a culpa pelo que estavam passando.
Em situações desse
tipo, sempre surgem as tentações por explicações fáceis, por modelos que
simplifiquem a realidade e lhe deem um sentido imediato. De repente surge uma
narrativa, tão simplória quanto acessível, na qual os judeus e os comunistas
(sim, os comunistas) apareciam como culpados pela derrocada do país,
mancomunados que estavam para controlar o governo e os bancos e enriquecer às
custas do povo alemão.
Ora, depois de
disseminada uma explicação simplista para os problemas, o segundo passo é o
surgimento, ainda como decorrência natural, de uma solução também simples: a
eliminação dos judeus e dos comunistas. Afinal, os alemães não são apenas
fisicamente superiores como raça, eles são também superiores no campo moral. Eles
são mais dignos, são mais trabalhadores, são mais respeitáveis, são mais
honestos. São, enfim, uma raça superior em todos os sentidos, e se a Alemanha
enquanto nação está arruinada, é porque teve seu comando nas mãos de pessoas
que não representavam o ideal de pureza e superioridade do povo alemão.
A eliminação dos judeus
e dos comunistas, portanto, surge como solução geral para todos os males da
Alemanha, pois ela extinguiria a origem de todos os problemas: o fato de a
Alemanha ter sido tomada por representantes de raças fisicamente inferiores e
moralmente degeneradas.
(A essa altura o raro
leitor já estará percebendo as semelhanças...).
Para implantar tal
solução, é preciso um governo forte e profundamente ligado aos ideais mais
elementares do nacionalismo Alemão. E assim surge Hitler, veterano da Primeira
Guerra, uma caricatura dos ideais de passado e de nação que os alemães anseiam
por resgatar.
O início do movimento
nazista não é bélico, é ideológico. Desenvolve-se todo um arcabouço simbólico, uma
mitologia da Alemanha, de seu passado, de seu povo. Até mesmo o mito da criação
é reinventado, com o jardim do Éden sendo transfigurado em uma versão nórdica
do conto bíblico, como um local gelado, coberto de neve e inspirado na
mitologia escandinava.
O povo alemão é
retratado como o mais antigo da terra. O mito da raça ariana é então inventado.
As origens arianas da Alemanha se misturam com a lenda do deus Thor, e até
mesmo seu martelo mágico é retratado como uma ferramenta tecnológica, resultado
do avanço e da inteligência da raça ariana, cuja origem remete a deuses de cabelos
louros e olhos azuis.
A doutrina nazista cria
sua própria religião e seus próprios rituais. Ecoando Nietzsche, o cristianismo
é retratado como responsável pela degeneração moral da sociedade, especialmente
por sua defesa dos fracos e por pregar a igualdade de todos diante de Deus. Ele
precisa, portanto, ser substituído por uma religião nova, baseada na
superioridade da raça ariana.
É claro que essa
mitologia é prontamente contestada por pesquisadores, historiadores,
antropólogos, arqueólogos, filósofos. E também é claro que esses pesquisadores
rapidamente são transformados em inimigos do povo alemão. As universidades e
centros de pesquisa onde eles trabalham são atacadas, acusadas de estarem
dominadas pelos comunistas e pelos judeus, e de mentirem sobre a história e o
passado da Alemanha. Cientistas e filósofos são perseguidos, assassinados, e
muitos só sobrevivem por que conseguem fugir para outros países, em especial os
Estados Unidos.
Veja que estamos
falando de um período em que Einstein desenvolve sua Teoria Geral da
Relatividade. Ora, Einstein, não esqueçamos, é judeu. Portanto, sua teoria
precisa ser negada pelo nazismo. Assim o governo Alemão, além de perseguir
Einstein, toma como seu contraponto oficial um cosmólogo famoso por teorias
bizarras, chamado Hans Horbiger. Ele então apresenta a “Teoria do Gelo Eterno”,
segundo a qual o universo foi criado pela colisão de dois gigantescos pedaços
de gelo, cuja fragmentação deu origem aos planetas, estrelas e galáxias. Ainda
segundo essa teoria, o próprio sol seria uma imensa bola de gelo. E o gelo não
é tomado como a origem do universo por acaso. Branco, ele simboliza a pureza,
assim como o povo alemão. Essa passa a ser a teoria oficial na Alemanha sobre a
origem do universo.
O governo alemão recria
todo um sistema de crenças e de compreensão do mundo baseado na negação da
ciência. Até mesmo no exército os cientistas são substituídos por charlatões
de toda ordem. Missões são enviadas ao redor do mundo para encontrar e resgatar
a arca da aliança e o santo graal. Departamentos são criados pelo governo para
encontrar alienígenas e roubar sua tecnologia. E as consequências não tardam a
chegar.
Em 1941 Hitler decide
invadir a URSS. Os charlatões responsáveis pelas previsões climáticas dentro do
exército preveem que o inverno daquele ano será ameno, e os alemães decidem
marchar rumo a Moscou, passando por Leningrado, no início da estação fria. Para avançar com mais rapidez, os soldados levam pouco agasalho. O
problema é que o ano de 1941 teve o inverno mais rigoroso em décadas. Quase
metade dos soldados alemães morre congelada, e os que sobrevivem não conseguem
se deslocar. A invasão da URSS torna-se o maior fiasco militar do nazismo, e
marca o início de sua derrocada na Segunda Guerra.
Pois é, raro leitor. A
essa altura você já deve ter feito alguns paralelos com nosso tempo e nosso
governo. Ódio aos comunistas (reais e imaginários); perseguição às
universidades e aos professores; obsessão por uma versão tosca e distorcida da
história; negação da ciência e dos cientistas em nome de mitologias, de
conhecimento baseado no senso comum e na “sabedoria” das redes sociais; adoção
de um astrólogo (vejam só!) como guia intelectual; até mesmo a defesa da terra
plana é ressuscitada como teoria válida, coisa que nem mesmo Hans Horbiger
ousou afirmar.
As semelhanças se
acumulam, e se tornam cada vez mais assustadoras. Para os interessados, vale a
pena pesquisar sobre o assunto, muito bem retratado em livros, artigos,
documentários.
A base do nazismo foi
uma tendência cultural ao ocultismo combinada com um ressentimento acumulado e
um profundo desejo de vingança do povo alemão contra aqueles que ele acreditava
ser os responsáveis pelo seu flagelo: os judeus e os comunistas.
No Brasil de hoje os
comunistas são também os principais responsáveis por todas as mazelas do país,
e o lugar dos judeus, por aqui, é ocupado pelos professores, pelos cientistas,
pelos filósofos. De repente a corrupção que afundou o país tornou-se uma
invenção dos "comunistas", e só depois que esses forem destruídos pelos "cidadãos de bem" é que o país poderá voltar a crescer.
Basta que os "cidadãos
de bem", na pessoa dos heróis da pátria, como o mito presidente e o ministro
super-homem, sejam deixados em paz para fazer o que lhes parece certo, e o país
finalmente será a potência que os comunistas impediram que fosse.
Cientistas, filósofos e
analistas que tecem críticas ao governo e ao seu modo de agir não passam de
inimigos do povo, conspiradores mancomunados com os judeus que são donos dos
bancos e da imprensa (nas palavras do Ministro da Educação) e que querem
disseminar o marxismo cultural para destruir a família e pregar o
homossexualismo.
Em um futuro não muito
distante o mundo olhará para o período em que vivemos hoje e ficará
impressionado com as bizarrices as quais fomos capazes de nos submeter. Será
motivo de espanto nossa capacidade: de negar o óbvio em nome da imbecilidade;
de combater a ciência com o charlatanismo; de negar a realidade com fake news; de corroer a democracia com o
messianismo; de destruir décadas de conquistas em meses de alucinação.
Contudo, quando no futuro as pessoas olharem para o que vivemos hoje,
elas não verão nada de novo. Verão uma repetição tosca, uma caricatura dos
piores momentos da história humana. Por que a história humana é feita de idas e
vindas, de repetições e de imitações. E negar o que fomos e o que fizemos é o
melhor caminho para voltarmos a ser e a fazer tudo de novo
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