Nas aulas sobre regimes
e sistemas de governo, costumo dizer aos meus alunos que a democracia não é uma
simples questão de matemática. Ela é, acima de tudo, uma questão de método.
A questão é que a
democracia não é apenas um regime onde vence “a vontade da maioria”. Se temos
um regime monárquico e o rei de plantão tem apoio e aprovação de mais de metade
da população, isso não é suficiente para transformar a monarquia em democracia.
O grande mérito da
democracia não está em criar um sistema em que a vontade majoritária saia
vencedora de processos eleitorais. Está na institucionalidade do regime que
assegura à minoria, aos grupos minoritários (derrotados na eleição) e suas
ideias a possibilidade de continuar existindo, de se organizar, de serem
ouvidos, de serem representados e, no futuro, disputar em pé de igualdade os
votos necessários para se tornar maioria.
Na teoria política as
maiores obras sobre a democracia não tratam de como esse regime deva se
organizar para expressar a vontade da maioria. Elas tratam do risco que
representa ao regime democrático o processo de silenciamento, de repressão e de
aniquilação das minorias, das ideias e das pessoas que, em um dado momento, são
eleitoralmente derrotados. Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e John Rawls são bons
exemplos disso.
A oposição e o direito
de exercê-la são tão importantes à democracia quanto um método de escolha que
assegure a tradução da vontade dos eleitores em votos, e dos desejos da maioria
em governo eleito. Eles representam as ideias que naquele momento (eleição)
foram derrotadas. Mas, como essa derrota pode ser determinada por uma
infinidade de variáveis, é não apenas plausível, mas absolutamente salutar ao
regime que essas mesmas ideias, ou variações delas, possam sobreviver e ser apresentadas
como opção no pleito seguinte.
A maravilha da
democracia não está no fato de produzir sempre os melhores resultados. A
ascensão de regimes fascistas pelo mundo, eleitos pelo voto da maioria, são
exemplos disso. A maravilha da democracia está em constituir-se como regime que
assegura ao povo o direito de fazer escolhas estúpidas, conviver com elas,
arrepender-se e, então, mudar de ideia e, também através do voto, redefinir os
rumos de seu governo na eleição seguinte. Está também nos arranjos institucionais
que não permitem ao governo eleito se valer da legitimidade das urnas para
destruir os adversários e/ou a própria estrutura de funcionamento da
democracia.
Por isso a beleza da
democracia está em assegurar que qualquer ideia, por mais estranha e inviável
que possa parecer ao surgir, tenha o direito de se expressar, de se difundir,
de disputar as mentes dos cidadãos e de se tornar, no futuro, a ideia dominante
– ou majoritária, para ficarmos nos termos eleitorais.
Mas, para que isso
ocorra, os grupos minoritários, os partidos derrotados nas eleições e as ideias
que eles representam, precisam ter assegurado seu espaço de atuação. Não são
apenas fraudes eleitorais e fake news
que ameaçam as democracias contemporâneas. Suas maiores ameaças vêm do uso das
estruturas de governo para aniquilar a oposição, o pensamento divergente, as
vozes dissonantes.
O sucesso eleitoral dá aos vencedores o direito de implantar, dentro das regras do jogo, suas ideias e as propostas pelas quais se elegeram. Mas não lhes dá o direito de aniquilar os derrotados, nem de usar as estruturas e as prerrogativas do governo para persegui-los e reprimir seu direito de expressar a divergência.
O espírito da
democracia reside no direito de discutir, de debater, de pensar diferente, de
expressar divergência, de fazer oposição, de apontar falhas e limites do
governo, de apresentar uma ideia contrária e disputar a simpatia e o apoio dos
eleitores.
O Estado de Direito e
não o voto é o verdadeiro coração da democracia. E a democracia dá sinais de
insuficiência cardíaca quando o governo de plantão trata a oposição como
inimiga, dele e do povo; quando usa as estruturas do governo para perseguir e
destruir o pensamento divergente; quando tenta atropelar as processualidades
institucionais para governar acima das leis ou contra elas, amparado pela
“legitimidade das urnas”; quando confunde os desejos de seu núcleo ideológico
com as necessidades do país e culpa a oposição por todo o mal existente no
mundo; quando usa a discricionariedade orçamentária para sufocar instituições e
espaços sociais onde o pensamento divergente se manifesta.
Não é preciso um golpe
militar para destruir a democracia. Não é preciso deixar de realizar eleições
para sufocá-la. A democracia pode ser corroída por dentro, e isso pode se dar
sem qualquer interrupção no calendário de eleições, e até mesmo com o apoio
popular. Basta que as instituições democráticas sejam deterioradas; que o
Estado de Direito seja usurpado em nome da “ordem”; que a liberdade de
expressão seja massacrada; que o direito de ter e manifestar ideias divergentes
seja criminalizado; que o autoritarismo seja legitimado em nome de Deus e da
família; que o conhecimento técnico e a ciência sejam negligenciados em nome do
obscurantismo e da ignorância; que o governo seja exercido para perseguir
a oposição em vez de buscar o bem do país.
A democracia é uma
invenção humana bastante jovem. Ela nem sempre existiu, e certamente nem sempre
existirá. Mas será uma tragédia histórica se o espanto e o assombro nos
paralisar e nos fizer aceitar pacificamente a sua destruição pelo ódio, pelo
ressentimento e pela mediocridade.
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