segunda-feira, 10 de junho de 2019

"O PIOR REGIME, EXCETO TODOS OS OUTROS"


Nas aulas sobre regimes e sistemas de governo, costumo dizer aos meus alunos que a democracia não é uma simples questão de matemática. Ela é, acima de tudo, uma questão de método.

A questão é que a democracia não é apenas um regime onde vence “a vontade da maioria”. Se temos um regime monárquico e o rei de plantão tem apoio e aprovação de mais de metade da população, isso não é suficiente para transformar a monarquia em democracia.

O grande mérito da democracia não está em criar um sistema em que a vontade majoritária saia vencedora de processos eleitorais. Está na institucionalidade do regime que assegura à minoria, aos grupos minoritários (derrotados na eleição) e suas ideias a possibilidade de continuar existindo, de se organizar, de serem ouvidos, de serem representados e, no futuro, disputar em pé de igualdade os votos necessários para se tornar maioria.

Na teoria política as maiores obras sobre a democracia não tratam de como esse regime deva se organizar para expressar a vontade da maioria. Elas tratam do risco que representa ao regime democrático o processo de silenciamento, de repressão e de aniquilação das minorias, das ideias e das pessoas que, em um dado momento, são eleitoralmente derrotados. Stuart Mill, Alexis de Tocqueville e John Rawls são bons exemplos disso.

A oposição e o direito de exercê-la são tão importantes à democracia quanto um método de escolha que assegure a tradução da vontade dos eleitores em votos, e dos desejos da maioria em governo eleito. Eles representam as ideias que naquele momento (eleição) foram derrotadas. Mas, como essa derrota pode ser determinada por uma infinidade de variáveis, é não apenas plausível, mas absolutamente salutar ao regime que essas mesmas ideias, ou variações delas, possam sobreviver e ser apresentadas como opção no pleito seguinte.

A maravilha da democracia não está no fato de produzir sempre os melhores resultados. A ascensão de regimes fascistas pelo mundo, eleitos pelo voto da maioria, são exemplos disso. A maravilha da democracia está em constituir-se como regime que assegura ao povo o direito de fazer escolhas estúpidas, conviver com elas, arrepender-se e, então, mudar de ideia e, também através do voto, redefinir os rumos de seu governo na eleição seguinte. Está também nos arranjos institucionais que não permitem ao governo eleito se valer da legitimidade das urnas para destruir os adversários e/ou a própria estrutura de funcionamento da democracia.

Por isso a beleza da democracia está em assegurar que qualquer ideia, por mais estranha e inviável que possa parecer ao surgir, tenha o direito de se expressar, de se difundir, de disputar as mentes dos cidadãos e de se tornar, no futuro, a ideia dominante – ou majoritária, para ficarmos nos termos eleitorais.

Mas, para que isso ocorra, os grupos minoritários, os partidos derrotados nas eleições e as ideias que eles representam, precisam ter assegurado seu espaço de atuação. Não são apenas fraudes eleitorais e fake news que ameaçam as democracias contemporâneas. Suas maiores ameaças vêm do uso das estruturas de governo para aniquilar a oposição, o pensamento divergente, as vozes dissonantes.

O sucesso eleitoral dá aos vencedores o direito de implantar, dentro das regras do jogo, suas ideias e as propostas pelas quais se elegeram. Mas não lhes dá o direito de aniquilar os derrotados, nem de usar as estruturas e as prerrogativas do governo para persegui-los e reprimir seu direito de expressar a divergência.

O espírito da democracia reside no direito de discutir, de debater, de pensar diferente, de expressar divergência, de fazer oposição, de apontar falhas e limites do governo, de apresentar uma ideia contrária e disputar a simpatia e o apoio dos eleitores.

O Estado de Direito e não o voto é o verdadeiro coração da democracia. E a democracia dá sinais de insuficiência cardíaca quando o governo de plantão trata a oposição como inimiga, dele e do povo; quando usa as estruturas do governo para perseguir e destruir o pensamento divergente; quando tenta atropelar as processualidades institucionais para governar acima das leis ou contra elas, amparado pela “legitimidade das urnas”; quando confunde os desejos de seu núcleo ideológico com as necessidades do país e culpa a oposição por todo o mal existente no mundo; quando usa a discricionariedade orçamentária para sufocar instituições e espaços sociais onde o pensamento divergente se manifesta.

Não é preciso um golpe militar para destruir a democracia. Não é preciso deixar de realizar eleições para sufocá-la. A democracia pode ser corroída por dentro, e isso pode se dar sem qualquer interrupção no calendário de eleições, e até mesmo com o apoio popular. Basta que as instituições democráticas sejam deterioradas; que o Estado de Direito seja usurpado em nome da “ordem”; que a liberdade de expressão seja massacrada; que o direito de ter e manifestar ideias divergentes seja criminalizado; que o autoritarismo seja legitimado em nome de Deus e da família; que o conhecimento técnico e a ciência sejam negligenciados em nome do obscurantismo e da ignorância; que o governo seja exercido para perseguir a oposição em vez de buscar o bem do país.

A democracia é uma invenção humana bastante jovem. Ela nem sempre existiu, e certamente nem sempre existirá. Mas será uma tragédia histórica se o espanto e o assombro nos paralisar e nos fizer aceitar pacificamente a sua destruição pelo ódio, pelo ressentimento e pela mediocridade.


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