O governo Bolsonaro não
é um governo orientado pelo conservadorismo. É um governo orientado pelo
ressentimento e pelo ódio. E esse ódio não é simplesmente contra os
“comunistas” ou contra a esquerda. Esse ódio é contra o livre pensamento. É
contra tudo e todos que veem o mundo de modo diferente.
O Brasil jamais teve um
governo liberal, e continua sem tê-lo. Com exceção do ministro da economia e
alguns membros de sua equipe, adeptos de uma versão tão radical quanto tosca do
neoliberalismo, o governo de plantão sequer compreende os preceitos do
liberalismo enquanto teoria política. Tampouco sabe o que é comunismo, marxismo
ou teoria do intelectual orgânico (aquela de Gramsci que eles tanto criticam,
mas nunca leram).
Quando esse governo,
através do seu recém-chegado ministro da educação, anuncia o estrangulamento
financeiro aos cursos de graduação em ciências humanas e filosofia, não apenas
se baseia em informações falsas e distorcidas (por exemplo, a de que esses
cursos seriam financeiramente privilegiados nas universidades desde os governos
do PT porque formariam comunistas), mas também assume, equivocadamente, que
esses cursos formam críticos ao seu governo porque disseminam o marxismo.
Ora, não há qualquer
necessidade de usar Marx para criticar o atual governo. Nem Gramsci, nem os
teóricos da escola de Frankfurt (se alguém não
souber o que é, procure no Google), nem qualquer pensador marxista mais
contemporâneo. O desgoverno de plantão pode ser desmontado analiticamente
apenas com autores centrais ao próprio pensamento liberal.
Tomemos, por exemplo,
John Locke, pai do liberalismo, em meados do século XVIII. Foi ele quem
defendeu que a liberdade individual, o direito de cada cidadão viver sua vida do
modo que julgar adequado, com absoluta liberdade de pensamento, de ação, de
comportamento, são inalienáveis e sagrados. Ao Estado não apenas é proibida
qualquer tentativa de impor aos indivíduos valores morais, princípios
religiosos, estilos de vida, padrões de comportamento. Lhe é imposto ainda o
dever de assegurar que também entre os indivíduos nenhum imponha a outro
qualquer restrição à essa liberdade.
E Locke vai além. A
legitimidade de qualquer governo está intimamente associada à sua capacidade de
assegurar tais liberdades, que não são invenções ou dádivas do Estado, mas
prerrogativas individuais que lhe são anteriores, e que àquele cabe garantir a
todos os cidadãos. Locke defende inclusive o tiranicídio, que é o direito
assegurado ao povo de atacar e destruir qualquer governo quando ele se tornar
uma ameaça às liberdades individuais.
Ora, a obsessão por
controlar a vida privada das pessoas, seu comportamento sexual, seu estilo de
vida, não é, de modo algum, decorrente da adesão ao liberalismo. Ao contrário,
é sua negação. Essa obsessão não é consequência de adesão à teoria alguma; é vingança
institucionalizada contra modos de viver e pensar que assustam por serem
diferentes. Freud e não Locke é quem explica esse governo e suas decisões.
São essas ideias
liberais que estão na base da Revolução Francesa e de todas as mudanças que ela
provocou no mundo ocidental. Dentre elas a consolidação dos Direitos Humanos
que, ademais de serem constantemente cooptados pela esquerda, por exemplo, no
Brasil, como sendo invenção sua, são preceitos iminentemente liberais.
Mas, seguimos nosso
raciocínio. Vamos até Tocqueville, já no século XIX. Outro grande marco do
pensamento liberal, estudou a cultura e as instituições políticas nos Estados
Unidos por volta de 1830. Ficou maravilhado com a capacidade de organização das
comunidades estadunidenses, especialmente as mais isoladas. Encantou-se com o
efeito político do associativismo e do comunitarismo, com o princípio da
igualdade de condições – visto que é ela que assegura, segundo os preceitos
liberais, a possibilidade de destaque individual.
Quando retornou à
França, Tocqueville redigiu conselhos (“A Democracia na América”) aos
franceses, mostrando-lhes o caminho para tirar da democracia o máximo que ela
poderia dar. Dentre os mais importantes estavam a preocupação com a igualdade
de condições, o incentivo ao associativismo, a defesa da liberdade de
expressão, o fomento ao pensamento crítico e à divergência de ideias, pois é
dela que nascem novas teorias, novas formas de conceber o mundo e de
transformá-lo.
Cheguemos à teoria
política liberal dos séculos XX e XXI. Para não alongar esse texto, fiquemos
com John Rawls, um dos grandes arquitetos do liberalismo de meados do século
passado. Ao aproximar o liberalismo da teoria jurídica, construiu um dos
maiores arcabouços teóricos em torno da justiça, de sua definição, de sua
promoção e do papel do Estado em assegurá-la.
E, mais uma vez, lá
estão os princípios da liberdade de expressão, de pensamento, de comportamento.
Lá está, novamente, a tese de que a liberdade só pode ser exercida em sua
plenitude se ela for uma prerrogativa de todos os cidadãos, o que implica
assumir a igualdade de condições como primeiro e mais importante dos princípios
de qualquer sociedade.
Por fim, lembremos de
Amartya Sen, Indiano, pensador contemporâneo adepto do liberalismo e ferrenho
defensor das políticas públicas sociais. Seu argumento central é o da defesa do
“Desenvolvimento como liberdade”. Não há, segundo ele, como se falar em
desenvolvimento enquanto comunidades e mesmo sociedades inteiras são
analfabetas, passam fome, não tem acesso a tratamentos básicos de saúde ou à
justiça. Não há como se falar em desenvolvimento enquanto crianças morrem de
desnutrição, não têm acesso à escola, não podem desenvolver suas capacidades
com plenitude.
A liberdade é um fim, um ideal político, que só pode ser alcançado quando os cidadãos são tratados como cidadãos, quando podem viver em condições de igualdade, e quando têm assegurados seus direitos e condições para desenvolver todo o seu potencial. E isso, claro, se faz com políticas públicas e com governos atuantes.
A liberdade é um fim, um ideal político, que só pode ser alcançado quando os cidadãos são tratados como cidadãos, quando podem viver em condições de igualdade, e quando têm assegurados seus direitos e condições para desenvolver todo o seu potencial. E isso, claro, se faz com políticas públicas e com governos atuantes.
Pois é. Tudo isso pode
ser tomado como argumento para desconstruir os discursos autoritários,
preconceituosos, raivosos e incompetentes do atual governo. E, contudo, sequer
passamos perto de autores marxistas. Ao contrário, ficamos apenas no campo da
teoria liberal, aquela mesma que eles dizem defender, mas que, ou nunca leram,
ou a distorcem estupidamente ao ponto de fazê-la caber em suas minúsculas
caixinhas ideológicas.
Quando o atual governo
ataca as universidades, os professores, as ciências humanas, a filosofia, ele
não está atacando o marxismo. Ele está usando a condição de governo e a
estrutura do Estado para atacar o livre pensamento em sua acepção mais básica.
Não é preciso ser
marxista para ver o ridículo. Basta pensar com autonomia, com rigor e com o
mínimo de honestidade intelectual. E o pensamento autônomo e o rigor de método
são princípios elementares do fazer científico, o que inclui as ciências
humanas, é claro, mas não é exclusivo delas.
O recém-chegado
ministro da educação não acabará com as críticas ao governo perseguindo e
atacando os cursos de ciências humanas. O que ele conseguirá é apenas
intensificar ainda mais as críticas ao governo do qual faz parte. Porque
frequentando ou não cursos de humanas, a maioria dos brasileiros ainda é capaz
de pensar. E basta fazê-lo com o mínimo de rigor e profundidade para concluir
que o país não é governado por “liberais conservadores”, mas por um bando de
trogloditas alucinados que não tem a mínima noção do que fazer com o país que
comandam.
Triste realidade!
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