Um dos debates mais
instigantes para os pesquisadores que, como eu, se dedicam à investigação das
relações entre cultura e comportamento sociopolítico, é aquele em torno das
“heranças culturais”. Trata-se de tentar compreender como o passado comum e
seus mitos, as tradições compartilhadas, o imaginário religioso, o padrão de
desenvolvimento institucional e tantos outros fatores estruturais ajudam a
configurar os enquadramentos por meios dos quais um determinado grupo percebe o
mundo, a si mesmo e aos outros, e como age em função disso.
É esse tipo de abordagem que
está na base, por exemplo, das tentativas de compreender o racismo arraigado na
cultura brasileira tomando, como um de seus elementos constitutivos mais
importantes, nosso modelo de colonização e nossa herança escravocrata.
Os efeitos da escravidão no
imaginário coletivo têm variações significativas entre as sociedades que a
praticaram. Roberto DaMatta, por exemplo, mostrou como o racismo se manifesta
de maneira distinta nos Estados Unidos e no Brasil, embora seja elemento
marcante e definidor das relações sociais nos dois países.
Hoje quero tratar da forma
como nossa herança escravocrata continua a influenciar a maneira como o
brasileiro médio percebe não apenas o negro especificamente, mas o pobre como
categoria social ainda mais ampla. Claro, não entro aqui no debate sobre a
sobreposição entre cor e condição econômica no Brasil, já demonstrada e
plenamente comprovada como um fato estruturante de nossa desigualdade. A esmagadora
maioria dos pobres em nosso país é de negros, e a grande maioria dos negros é
pobre. Contudo, para as reflexões que seguem, tomarei a pobreza em seu sentido
econômico como categoria de análise.
A relação entre senhores e
escravos, no Brasil, não era apenas uma relação entre pessoas em condições
econômicas distintas. Ela sempre foi percebida também como uma relação entre
diferentes níveis de moralidade. Os escravos eram vistos como pessoas
inferiores em todos os sentidos, o que inclui a noção de caráter. Eram seres
degenerados, inclusive frequentemente desumanizados.
Essa característica, que
remete ao período da escravidão, não desapareceu com o fim daquele regime. Ao
contrário, ela se consolidou e se arraigou ao imaginário da população. No
Brasil, pobres não são apenas pessoas sem dinheiro; são pessoas consideradas inferiores,
ignorantes, incompetentes, não confiáveis, moralmente degeneradas.
Como fenômeno social, a
pobreza em nosso país é um excelente fator de marketing e aceitação. Ela é
objeto de curiosidade, de observação. Novelas, filmes, peças de humor, documentários...
Sempre tiveram na pobreza e na miséria econômica uma fonte de inspiração e
garantia de sucesso. Mas isso nunca foi capaz de modificar o desprezo profundo
que principalmente as classes média e alta sempre nutriram pelo pobre como ser
humano. A elite brasileira nutre certo fascínio pela pobreza, mas tem ojeriza,
desprezo e nojo pelos pobres, de quem se considera moralmente superior.
É assim que, por exemplo,
vestir-se de mendigo maltrapilho é garantia de sucesso no carnaval, como se
isso satisfizesse uma curiosidade profunda e nutrisse um desejo inconsciente de
sentir, por algumas horas, como é viver aquele “estilo de vida”. Mas em todos
os outros dias do ano o mendigo e os miseráveis são objeto de xingamento,
vistos como sujeira nas cidades, tratados como lixo, tornados invisíveis e
desprezados sistematicamente.
E o mesmo profissional
liberal que se veste de mendigo no carnaval, que vai à igreja e reproduz um
discurso religioso de valorização da pobreza como fator de dignificação, é o
que defende o extermínio de negros, de moradores da favela, de “marginais”.
Afinal a “marginalidade”, em nosso imaginário, sempre esteve associada aos
pobres, aos moradores da periferia. E a “marginalidade”, assim como a pobreza
que lhe está associada, não se combate com políticas de assistência e de
inclusão; se combate com políticas de extermínio.
Mas, voltemos à visão dos
pobres como seres inferiores. Ela é tão forte em nossa cultura que chega a se
propagar até mesmo entre os pobres. Os níveis de pobreza, como sabemos, são
muitos, o que assegura que, independentemente da condição em que um cidadão se
encontra, sempre é grande a probabilidade de que alguém esteja ainda pior. Por
isso é comum vermos pobres com nojo de pobre, pessoas que por estarem, mesmo
que temporariamente, em situação econômica ligeiramente mais confortável que o
vizinho, já se acham melhores que ele e no direito de reprimi-lo moralmente por
sua condição.
Basta encontrar alguém “mais
pobre” do que ele que o brasileiro já se vê na condição de superior e se sente
à vontade para discursar sobre os maus hábitos dos “pobres”, sobre sua falta de
iniciativa e de higiene, sobre seus hábitos reprodutivos e número de filhos,
sobre sua falta de “disposição” para trabalhar...
Por isso damos tanta
importância a coisas que simbolizam nossa suposta “condição melhor”. Afinal,
afirmar nossa condição econômica passa a ser uma forma de indicar ao mundo a
natureza de nossa fibra moral. O sujeito ganha 50 reais de aumento no salário e
a primeira coisa que faz é contratar uma faxineira para fazer os trabalhos
considerados degradantes, como esfregar o chão e limpar o banheiro. Afinal,
trabalhos degradantes são coisa de pobre, pois pobre é moralmente degradado.
Dados da OMC, por exemplo, mostram que mesmo estando longe de ser um país rico,
o Brasil é a nação do planeta com o maior número de faxineiras e empregadas
domésticas...
E assim construímos todo um
modelo mental, um imaginário coletivo de significação da condição econômica dos
outros a partir de referências morais. Afinal, como somos um país onde as
pessoas são livres, a pobreza só pode ser resultado de degeneração moral, de
alguma falha no caráter. Assim como a riqueza é sempre vista com inveja e
admiração, nunca com desconfiança. Afinal, quem rouba são apenas os pobres, que
praticam crimes porque gostam ou porque não são “gente de bem”. Além dos
políticos, é claro.
Empresários, médicos,
advogados são gente de estirpe superior. Jamais sonegam impostos, não tiram
proveito das pessoas, não enganam ninguém, nunca faltam com a ética, são seres
humanos exemplares, não tratam seus empregados com desrespeito e preconceito,
não se acham superiores. Quando o médico, por exemplo, dá uma lição de moral
sobre os hábitos alimentares a um pobre que o consulta por causa de uma gripe
forte, ele só está dando uma abordagem integral ao seu estado de saúde, jamais
se considerando na condição de ser superior que tem o direito de dizer aos outros
como devem viver suas vidas.
Essa marca cultural
brasileira sempre permeou nossas relações sociais, sempre esteve na base dos
arranjos que organizaram nossa vida política, nosso mundo do trabalho. Não é
algo novo. O que temos de novo é o fato de que, ao contrário de outros tempos,
esse elemento cultural deixou de ser algo velado, disfarçado. Hoje é algo que
muitas pessoas fazem questão de assumir, de demonstrar, de orgulhosamente
espalhar pelas redes sociais.
Talvez seja porque vivemos
tempos em que o próprio governo toma a noção de que pobre é sinônimo de
problema e causa dos males do país como parâmetro para governar. Afinal, como
brilhantemente diagnosticou nosso ministro da economia, nem lidar com dinheiro
os pobres sabem. "Basta ganhar um pouco de dinheiro que já saem gastando
tudo", ao contrário dos ricos, seres superiores e mais conscientes, que
"se preocupam em investir e capitalizar".
Essa ideologia é muito mais
ampla. Sistema de previdência para amparar os pobres? Coisa de comunista
que quer falir o Estado. Leis trabalhistas para proteger os trabalhadores
pobres? Empecilho ao desenvolvimento econômico que os empresários brasileiros,
esses seres angelicais e de moral elevadíssima, só não conseguem efetivar
porque os direitos dos seus funcionários atrapalham. Educação pública?
Desperdício de dinheiro, pois a lei diz que somos todos iguais e, portanto,
todos devem cuidar da sua vida, empreender e ganhar dinheiro sem ajuda do
governo. Políticas de combate a pobreza e às desigualdades? Absurdo comunista
que usa os impostos dos “cidadãos de bem” para ajudar vagabundo preguiçoso.
Segundo essas visões de
mundo, o Brasil só vai melhorar mesmo é quando acabar de vez com esse negócio
de direitos, de proteção social, de combate à pobreza com políticas públicas,
de educação gratuita, de proteção dos vulneráveis. Chega desse negócio de
cobrar impostos dos “cidadãos de bem” para financiar políticas de combate à
desigualdade. O dinheiro dos impostos deve ser usado para comprar mais armas e
munição, e “mandar bala na bandidagem”. De preferência, “bem na cabecinha”.
Fantástico!
ResponderExcluir