No último dia 27, João
Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo, publicou um belo texto sobre
a estupidez humana. Ele parte de um clássico sobre o tema, do qual li resenhas
quando estava na faculdade (ainda não há traduções no Brasil) e ao qual tenho
voltado com frequência nos últimos tempos. Trata-se do italiano Carlo Cipolla e
sua obra que, em uma tradução livre, traz como título: “Leis Básicas da Estupidez Humana”.
Considerando os tempos em
que vivemos, o tema é importante demais para que o receio de ser repetitivo em
alguns pontos (em relação ao texto de Coutinho) seja motivo para não tratar
dele. É o que faço hoje.
No modelo de Cipolla, são
três as leis básicas da estupidez. A primeira afirma que é recorrente, em todas
as sociedades, que se subestime o número de estúpidos em circulação. Há muito
mais estúpidos por aí do que costumamos imaginar. E a forma como nos espantamos
ao encontrar um representante da espécie só mostra o quanto subestimamos seu
contingente.
A “segunda lei de Cipolla”
afirma também ser equívoco imaginarmos que a estupidez – ou sua diminuição –
tenha alguma relação com a educação ou com a posição dos indivíduos na
hierarquia social. Os estúpidos são um universal humano, portanto presentes em
todos os segmentos, em todas as classes e níveis educacionais, em todos os
setores, em proporções relativamente estáveis.
A estupidez não é algo que
se combate ou se anula com educação formal. Diplomas e honrarias acadêmicas,
por exemplo, em nada diminuem nem o número de estúpidos nem seus níveis de
estupidez. Ao contrário, é comum que títulos e diplomas a acentuem significativamente,
pois ainda pior que um estúpido é um estúpido com status.
A “terceira lei” é,
acredito, a que mais nos ajuda a pensar os estranhos tempos em que vivemos. Ela
apresenta uma tipologia segundo a qual os estúpidos podem ser classificados em
quatro categorias gerais, definidas especialmente a partir do impacto que suas
ações produzem sobre si mesmos e sobre os outros: os inaptos, os bandidos, os
inteligentes e, claro, os estúpidos. Vamos a cada um deles.
Uma pessoa inapta se
aproxima muito do que costumamos chamar de ingenuidade. Quando age, tende a
beneficiar os outros, geralmente prejudicando a si mesma. Seja por
desconhecimento ou de forma intencional, as pessoas desse grupo são, com
frequência, manipuladas pelos outros, exploradas, com baixa autoestima e bastante
influenciáveis. Também estão nesse grupo os altruístas e aqueles que dedicam
suas vidas a causas humanitárias e ambientais, por exemplo.
O bandido é o modelo oposto
do inapto. Quando age, prejudica os outros para beneficiar a si mesmo. O faz
por meio da manipulação, da falsidade, do engano, da mentira. Nesse grupo estão
desde enganadores e golpistas até psicopatas assassinos e sequestradores,
passando por criminosos do colarinho branco e mentirosos do cotidiano.
O inteligente é aquele
indivíduo que, ao agir, consegue produzir benefícios a todos ou, ao menos, a
parte da sociedade. Estão nesse grupo as pessoas que possuem a rara capacidade
de agir pensando no interesse público, essa coisa tão em baixa ultimamente.
Essa habilidade decorre, fundamentalmente, da capacidade de agir racionalmente,
de ponderar, de considerar as variáveis envolvidas e, então, tomar decisões
visando o bem coletivo. Pois ao fazê-lo o indivíduo inteligente, como parte do
público, também se beneficia (por isso é inteligente!). São, por exemplo, as habilidades que os gregos já
consideravam fundamentais para o exercício da política, para a participação na polis.
Por fim, o que define o
estúpido é a capacidade de, ao agir, prejudicar os outros e, ao mesmo tempo,
não extrair daí nenhum benefício para si mesmo. Ao contrário, com frequência, entre
os resultados de suas ações estão consequências negativas também para ele
próprio. É a quase completa irracionalidade do estúpido que o torna uma ameaça,
tanto para a sociedade quanto para si mesmo. É por isso que Cipolla vê no tipo
estúpido a maior ameaça social, o indivíduo mais perigoso de todos. Inclusive
mais perigoso que o bandido.
O iluminismo disseminou a
noção – não totalmente verdadeira, segundo Cipolla – de que a racionalidade é
uma característica universal. Costumamos pensar que não faz sentido alguém agir
de modo que, ao fazê-lo, prejudicaria a si mesmo. Por isso é tão difícil
compreendermos o comportamento (do) estúpido.
Podemos lamentar e nos
consternar com o comportamento dos inaptos; admiramos os inteligentes e sua
capacidade de agir racionalmente; e conseguimos até mesmo compreender,
inclusive cientificamente, a cabeça do bandido. Mas os estúpidos fogem ao nosso
entendimento. Eles resistem não apenas à nossa capacidade de empatia, mas
também aos nossos esforços de compreensão.
O comportamento estúpido não
segue nenhuma lógica, não possui qualquer elemento de racionalidade que permita
analisá-lo com as ferramentas do pensamento científico ou filosófico. Ele nos espanta
todos os dias, e nossa dificuldade de encontrar qualquer sentido naquilo que
ele faz é permanente.
É claro que a tipologia de
Cipolla não é a última palavra sobre a natureza humana, nem está imune a
críticas e limitações. Muitos já a atacaram, justamente por ser uma tentativa
de tipificar o comportamento humano, categorizando as pessoas. Contudo, não se
trata de assumir o seu modelo como a verdade última sobre o mundo, mas como uma
ferramenta de interpretação da sociedade em seus diversos aspectos.
Suas “leis” podem ser úteis
para olharmos o cotidiano a nossa volta e as pessoas que fazem parte dele. Pode
servir para entendermos, por exemplo, que aquele nosso colega de trabalho insuportável
é um estúpido, não um bandido. Ou podem nos ajudar a compreender o contexto político
em que nosso país está enredado.
Como diz Coutinho, se fizermos
um exercício simples de “aplicação” do modelo de Cipolla ao nosso mundo
político, rapidamente perceberemos que “políticos
inteligentes são raros; políticos inaptos, daqueles que beneficiam os outros pelo
sacrifício dos seus interesses, são mais raros ainda”. A grande maioria se
divide entre a bandidagem e a estupidez. E, ainda citando Coutinho, é
muito difícil a tarefa de decidir qual dos dois é pior. Afinal, podemos
acreditar com alguma segurança que livrar o sistema político brasileiro dos
bandidos e então entregá-lo aos estúpidos nos transformaria em um país melhor?
Um governo que não apenas se
nega a usar a razão, como também a combate sistematicamente, será a solução
para nossos males? Nos tornaremos uma potência mundial por sermos “guiados” por
pessoas obcecadas em atacar seus “inimigos”, quase todos imaginários, que
acabam por se tornar os maiores adversários de seu próprio governo?
Sobre isso, novamente preciso
concordar com Coutinho, ao alertar que Cipolla talvez tenha se enganado em suas
projeções. Para o historiador italiano, à medida que as sociedades se
desenvolvem as pessoas inteligentes acabariam assumindo, progressivamente, o controle
das instituições políticas. Com isso, além de a sociedade toda se beneficiar,
também os estúpidos seriam controlados, assim como as mazelas coletivas que
potencialmente poderiam provocar. Como diz o colunista da Folha:
Muito bom o texto! Triste realidade.
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