Uma característica
profundamente associada ao fanatismo é a cegueira. Cegueira seletiva, no caso.
Incapacidade – ou falta de vontade – de perceber em nós mesmos e naqueles que apoiamos
as mesmas características e comportamentos criticados e denunciados nos outros.
No Brasil em que vivemos,
dividido, movido pelo ódio e pelo fanatismo em sua versão mais tosca, a
cegueira seletiva tem se tornado um problema de saúde pública. Obcecados por
acusar os adversários de responsáveis por todos os males do mundo, as pessoas
não se dão conta das contradições gritantes em que caem diariamente.
Tomemos apenas um exemplo,
dos mais recentes. O Presidente do STF, Dias Toffoli, em período de recesso da
Corte e atendendo a um pedido “avulso” da defesa do filho número 01 do
Presidente da República, suspendeu todas as investigações em andamento
iniciadas com base em informações fornecidas pelo COAF sem autorização judicial
prévia. Não entro aqui no mérito da decisão, algo que muitos analistas,
especialmente do campo jurídico, já fizeram bem. Minha inquietação decorre da
total ausência de indignação dos apoiadores do atual governo à decisão.
Façamos um exercício rápido
de imaginação. Pensemos que o pedido tivesse sido formulado não pelos advogados
de Flávio Bolsonaro, mas pela defesa do ex-presidente Lula, ou de qualquer
outro político ligado à esquerda implicado na Lava-Jato. Teríamos mobilizações
virtuais e de rua pelo país afora, bonecos do presidente do STF sendo
queimados, ameaças de linchamento, fake
news espalhadas a todos os ventos. Mas, como o beneficiado direto da
decisão foi o filho 01... Nada!
Onde estão os “cidadãos de
bem” para fazer passeatas em nome do combate à corrupção e à “velha política”?
Onde estão as hordas de devotos de Moro e Dallagnol que não tomam as ruas
inflando bonecos e gritando palavras de ordem contra os corruptos e pedindo o
fechamento do STF? Onde estão os enxames de intelectuais de direita “empoderados”
pelo Face Book para pregar revolta e
indignação contra as decisões do STF que beneficiam políticos lambuzados com a
lama da corrupção, do abuso de poder, da associação entre política e milícia?
Nem mesmo os adeptos da
teoria da conspiração foram capazes de cogitar, por exemplo, a possibilidade de
Dias Toffoli ter esperado durante todo esse tempo justamente para beneficiar
outros investigados da Lava-Jato, até que um pedido oriundo de alguém da
direita bolsonarista aparecesse, a fim de, no atacado, beneficiar todo mundo
sem parecer estar ajudando algum político da esquerda. Afinal, se essa decisão
fosse tomada em função de um pedido de defensores de um petista, o mundo
cairia. Então, tendo esperado um pedido feito por defensores de Flávio
Bolsonaro, ele decide de forma geral, beneficiando aqueles que, na verdade,
sempre esperou beneficiar. Maluquice? Provavelmente. Mas muito menos insana do
que a maioria das teorias que bolsonaristas divulgam todos os dias.
Afinal, somos contra as
práticas de corrupção em si, ou apenas contra a corrupção dos “adversários”?
Será que, no fundo, todos temos nossos políticos de estimação, contra os quais
somos incapazes de direcionar nossas críticas e exigências ético-morais?
Será que essa cegueira
seletiva é contagiosa? Tem cura? É uma doença crônica? Vemos a internet cheia
de gente corajosa gritando aos quatro ventos que a divulgação jornalística dos
diálogos que mostram o submundo da Lava-Jato é criminosa, a despeito do que diz
a Constituição Federal sobre a liberdade de imprensa. Onde estavam esses
corajosos militantes quando a imprensa divulgou os diálogos entre Dilma (então presidente)
e Lula, gravados ilegalmente e divulgados ilegalmente pelo então juiz Sérgio
Moro? Onde estavam quando a imprensa divulgou os diálogos gravados ilegalmente
por Joeslei Batista, entre ele e o então presidente Michel Temer?
Não, não estou dizendo que
essas situações anteriores sejam motivo para criminalizar o trabalho da
imprensa. Ao contrário, estou entre os que compreendem e defendem a distinção
entre o processo de obtenção das informações (que em todos esses casos foi de
forma criminosa) e sua divulgação pela imprensa, assegurada pela Constituição
no bojo do princípio democrático de uma imprensa livre, e baseada na noção de
interesse público, também presente em todas as situações.
O que frustra é ver a
esmagadora maioria da população demonstrar ou incapacidade ou falta de vontade para
perceber o que esses episódios têm em comum, o que obrigaria a tratá-los da
mesma maneira. Porém, eis que a cegueira seletiva entra em cena, e então nossos
filtros deixam de fora do rigor analítico nossos políticos de estimação.
Há muito de verdade no que
tantos especialistas têm dito nos últimos tempos: que em uma democracia madura
e consolidada as instituições se mostrariam mais sólidas e reagiriam,
expurgando aventuras personalistas e messiânicas, seja no campo eleitoral, seja
no campo jurídico. Na maioria das democracias pelo mundo afora, Moro e
Dallagnol já estariam afastados dos cargos e respondendo por seus desvios de
conduta.
Mas tenho a impressão de que
se diz pouco sobre o papel da população nessa história. Instituições fortes são
imprescindíveis para a sustentação de um regime democrático. Contudo, elas não são
suficientes. Não há democracia no mundo que se consolide e que seja capaz de
durar sem uma cultura democrática robusta que dê sustentação ao regime e às
suas instituições. Embora nossas instituições democráticas sejam, de fato,
frágeis, esse está longe de ser o único problema de nossa democracia. Nossa
cultura democrática é ainda mais precária.
O Brasil não terá uma democracia forte enquanto seus eleitores agirem
como hordas de animais guiados pelo fígado, que acreditam que o país só será
melhor quando os adversários políticos forem todos linchados e destruídos. A
única coisa que esse comportamento é capaz de alimentar são as sementes do
autoritarismo, essa coisa horrorosa de que tantos acusam a Venezuela, mas que
são incapazes de perceber no próprio quintal.
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