Em parceria com
Anderson Ribeiro, a quem credito a ideia geral do texto e também a maior parte de seu conteúdo.
Em 1919, em edição do dia 30 de maio, a Revista Science publicava um
artigo com o título “As lições da Pandemia”,
escrito por G. A. Soper. O autor destaca, tratando da “Gripe Espanhola”, que o
mais marcante daquela epidemia, que devastou o mundo entre 1918 e 1919, matando
mais de 50 milhões de pessoas, era o grande desconhecimento sobre a doença,
sobre sua origem e sobre como pará-la.
No artigo de 1919, Soper elencava ainda os fatores que
atrapalhavam a prevenção:
1 – A indiferença do público: principalmente
pela confusão com outras infecções respiratórias de menor potencial, como o resfriado comum.
2
- O caráter individual das medidas que precisavam ser tomadas: não está no comportamento
padrão das pessoas se isolar como medida de proteção ao outro, especialmente
quando o indivíduo acredita que só tem um simples resfriado, com pouca ou
nenhuma chance de virar uma infecção grave.
3 - A natureza altamente infecciosa das doenças respiratórias: com variados
tempos de incubação, com as pessoas podendo transmitir a doença antes mesmo de
perceber ou apresentarem sintomas.
Um século depois estamos nós, novamente, enfrentando uma
epidemia de proporções globais, uma pandemia. Com potencial muito mais
devastador do que H1N1, SARS, MERS, e mesmo HIV, a pandemia da COVID-19 é, certamente, é maior dos últimos
100 anos.
Estamos em situação muito diferente daquela experimentada
em 1919 em termos de conhecimento: sabemos o que é a doença, conhecemos
minimamente seus mecanismos de transmissão e a forma como age nos organismos
infectados. Muitos esforços mundiais estão sendo feitos para pará-la. E embora
ainda não tenhamos descoberto um tratamento eficaz, sabemos que o isolamento
social é uma estratégia bastante eficiente de controle da propagação, o que é fundamental
para assegurar atendimento médico-hospitalar para os casos graves da doença.
Ao longo do século XX o desenvolvimento das pesquisas
científicas permitiu conhecer os mecanismos de transmissão, identificar os patógenos,
desenvolver vacinas e/ou medicamentos capazes de controlar os efeitos, criar
modelos preditivos do comportamento do contágio e muito mais, prevenindo ou
atenuando os impactos de uma ampla gama de doenças. Com exceção do HIV, todas
as demais epidemias tiveram efeitos muito menores do que os da Gripe Espanhola,
por exemplo.
Mesmo assim, estamos vendo uma epidemia sacudir o mundo,
expor muitas características e fragilidades dos nossos sistemas político e
social que ficam soterradas no cotidiano, na nossa rotina que não proporciona
momentos de parada, de reflexão, e que agora se escancaram. Se as pesquisas no
campo da medicina aumentaram muito nossa capacidade de lidar com a dimensão biológica das doenças,
nossa compreensão de suas conexões com o mundo social, econômico, político e cultural
ainda são as mesmas de 1919, ou até piores.
A
má distribuição de renda e a falta de acesso a condições dignas de vida
entram em evidência em momentos como esse. A falta de segurança social, a
precariedade do emprego e do trabalho informal, as relações de trabalho
desequilibradas, são fatores que se escancaram como nunca. Os problemas de
moradia, precária ou inexistente para grande parte da população, de falta de
saneamento básico e de políticas preventivas de saúde ganham destaque, pois expõem
a situação que, para a grande maioria, se tornou o “normal”. Nossos centros
avançados de medicina de ponta fazem transplantes de coração, de mãos e de
medula, mas a maior parte da população padece de doenças decorrentes da falta
de saneamento, de água potável, de alimentação básica.
A concentração de pessoas em favelas e nas periferias das
grandes cidades é fator que preocupa médicos, epidemiologistas, cientistas em
geral e autoridades públicas sérias. A escandalosa falta de saneamento básico
nesses locais aumenta exponencialmente os fatores de risco. A necessária medida
de distanciamento, que obriga muitas pessoas a ficarem em suas casas, gera
impactos significativos para os que trabalham na informalidade e que dependem
da atuação diária para o seu ganha-pão e não têm nenhum tipo de
seguridade social ou plano de previdência, dado que as condições de exploração a que são submetidas
fazem com que mal ganhem para a comida do dia. Para muita gente em nosso país, não trabalhar de
dia significa não comer de noite.
Salta aos olhos o despreparo dos órgãos
governamentais, especialmente quando atravessamos um período onde a ordem do
dia são os cortes no orçamento público e o encolhimento do Estado em nome da fé no mito
do mercado como solução para tudo. Hipnotizado pelo mantra do ultraliberalismo,
nosso governo central paralisa sem rumo, e a única coisa que consegue fazer bem
é lamentar que as reformas em tramitação precisarão esperar. O stress dos
especuladores, que estão perdendo dinheiro na bolsa de valores, é visível no
semblante dos responsáveis pela economia nacional. O desespero dos doentes e
dos pobres que morrem tanto pelo vírus quanto pela fome, não.
Fica claro também que existe uma
rede interligada de ações públicas que permitem o desenvolvimento da iniciativa
privada, dando-lhe estrutura e sustentação. Sem educação pública, mães e
pais não têm onde deixar
seus filhos, muito menos condições de lhes dar uma educação de qualidade por
meio de home schooling. Sem serviço público de saúde,
o atendimento aos trabalhadores em geral seria precário ou inexistente,
submetendo a maioria da população a condições ainda piores de vida, o que traria impacto para a
força de trabalho que é demandada para alavancar a economia nacional.
Curiosamente esses serviços básicos, como educação pública e amparo
social aos mais vulneráveis, têm sido fortemente atacados e desmantelados nos últimos
anos no Brasil, em nome de uma concepção ultraliberal de sociedade onde o Estado
deve ser estrategicamente ausente e a iniciativa privada resolveria todos os
problemas do mundo. Isso, claro, se todos os problemas do mundo forem os seus
problemas.
Ironicamente, a pandemia que enfrentamos tem mostrado a
importância de sistemas públicos de saúde e de educação, de investimento em
pesquisa e desenvolvimento científico, ao tempo em que evidencia o preço que se
paga quando essas questões são negligenciadas e sucateadas. O sistema único de saúde
(SUS) permite uma rápida coordenação de esforços em todos os estados e municípios
do país, dado que já tem estrutura e organização, possibilitando
uma ação eficiente frente aos efeitos da pandemia. Também permite a coordenação
de medidas preventivas que são, no atual momento, a melhor medida que temos
para mitigar o contágio.
Ao mesmo tempo, o investimento em ciência e
desenvolvimento científico e tecnológico, em todas as áreas do conhecimento, se mostra não só necessário, mas
absolutamente indispensável. A dependência de tecnologia importada, de
conhecimento produzido em outros lugares, de insumos para pesquisa e mesmo de
produção local de derivados dessas pesquisas, pode ser a maior fragilidade do
país em um momento de crise sanitária. Felizmente ainda temos um sistema de
pesquisa e produção de conhecimento funcionando, embora a duras penas e graças à determinação dos
pesquisadores, muitas vezes com sacrifícios pessoais, nas universidades públicas
e nos institutos de pesquisa. A rede de pesquisa nacional mostra toda sua capacidade
e competência ao responder agilmente às demandas e apresentar soluções
inovadoras e inteligentes, ao mesmo tempo em que mostra os problemas
decorrentes do descaso e do sucateamento enfrentado nos últimos anos.
Soper diz que a grande lição da pandemia de 1919 foi
chamar a atenção para a prevalência de doenças respiratórias em tempos comuns, à
indiferença com que são comumente consideradas e à incapacidade, na época, de
proteção em relação a elas. Que, depois de sobreviver à COVID-19, tenhamos
aprendido lições importantes que possam nos ajudar a repensarmos nosso modelo
de sociedade.
Que aprendamos
que os efeitos de uma pandemia vão muito além dos sintomas causados pelo vírus
na saúde das pessoas que ele infecta. Eles afetam todas as dimensões da vida,
desde a economia e a política até as relações cotidianas mais básicas. E seus
maiores estragos, invariavelmente, se dão entre os mais pobres.
Que aprendamos
que quando estamos no meio de uma pandemia não adianta cobrar dos cientistas
que apresentem curas e vacinas, se em tempos “normais” os tratamos como
inimigos e lhes retiramos as condições mínimas para pesquisar. Que não esqueçamos
que se o impacto da pandemia está sendo minimizado em nosso país, é graças ao
SUS, é graças ao sistema público e aos servidores públicos que nele trabalham,
e que por todo o país hospitais privados e planos de saúde têm sido denunciados
por negar atendimento às pessoas.
Muito tem se dito
que após a pandemia nada vai voltar ao que era antes, ao “normal”. Que assim
seja, pois como também tem se repetido muito nos últimos dias, foi o normal que
nos levou a situação em que estamos.
Se não pensarmos,
enquanto sociedade, em mecanismos de combate do que se tornou o “normal” e
repararmos injustiças sociais históricas, estaremos fadados, no futuro, como
disse Cazuza, a repetir o passado.
Nosso Ministro da Saúde Nelson Teich, mesmo durante o tempo em que era vivo, nunca leu um texto como este. Como o conhecimento, a cultura e a ciência fazem falta ao Brazil da Terra Plana...
ResponderExcluirExcelente!
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