Lá se vão dois anos e oito meses desde que publiquei, aqui no blog, em fevereiro de 2020, “O Jair que há em nós”. O texto teve grande repercussão nacional, foi plagiado, reproduzido sem autorização em veículos digitais e impressos, atribuído a outras pessoas. Também foi alvo de muitas acusações por, supostamente, conter afirmações agressivas aos brasileiros, especialmente os eleitores de Bolsonaro.
A tese central daquele texto era de que Bolsonaro não é um acidente da história, mas uma síntese bastante representativa de boa parcela dos brasileiros. Machistas, homofóbicos, autoritários, defensores da tortura e da violência policial, negacionistas, cristãos hipócritas e violentos. Esses não são adjetivos de um candidato outsider que ganhou voto de confiança para “mudar isso daí”. São atributos de uma grande parcela da sociedade brasileira que viu em Bolsonaro seu representante. A ascensão de Bolsonaro seria, portanto, a projeção política desse modo de ver o mundo que, infelizmente, é bastante comum em nossa sociedade.
Muitos comentários que recebi me acusavam de ser agressivo e até mesmo preconceituoso com os eleitores de Bolsonaro. Diziam que nem todos eram assim, e que meu erro estava na generalização. Como em tudo o que faço, levo muito a sério as críticas que recebo. Desde então, tenho pensado muito sobre a hipótese de os votos que Bolsonaro fez em 2018 terem, em parte, de fato vindo de pessoas que “apenas” estavam influenciadas pelo antipetismo e pela aversão à corrupção, seduzidos pela lava-jato e pela exploração que a mídia fez dela. Embora Bolsonaro já estivesse há décadas, como deputado, mostrando o que era e o que pensava, precisava dar crédito à hipótese de ele não ser conhecido pelo grande público, ao menos no que se refere às dimensões mais toscas e fascistas de sua atuação política. Enfim, considerei como relativamente plausível o argumento de que muita gente “não sabia”.
Mas, eis que veio 2022, e uma nova eleição. E Bolsonaro não apenas manteve sua base eleitoral. Ele a ampliou. Tudo o que fez – e o que não fez – nesses quatro anos não apenas foi suficiente para manter sua base de eleitores, como também serviu para aumentá-la. Pois bem, isso torna difícil continuar acreditando na tese do “não sabia”. O que me leva de volta ao texto de 2020. Afinal, não estamos mais falando de um deputado medíocre do baixo clero, mas do Presidente da República. Agora seus feitos políticos vão além de discursos homofóbicos, defesa da ditadura, machismo, falta de educação, amizade com milicianos, compra de imóveis com dinheiro vivo e acusações de rachadinha.
Seus quatro anos de governo incluem compra de apoio do centrão com orçamento secreto, desmantelamento de políticas públicas em todos os setores. Amparo ao desmatamento e ao garimpo ilegais. Denúncias de corrupção graúda, incluindo conluios envolvendo pastores em tráfico de influência e negociações em barras de ouro e bíblias. Atraso na compra de vacinas que poderiam ter evitado milhares de mortes pela COVID e interferência na polícia federal.
Ameaça de golpe, deterioração da democracia e ataques às instituições democráticas. Segredo de 100 anos para processos contra ministros, para os extratos do cartão corporativo e até para sua carteira de vacinação. Gabinete do ódio, fake news, ataques à imprensa (especialmente mulheres da imprensa!). Sucateamento do SUS, das universidades públicas, do INPE e do IBAMA.
Perdão a deputado condenado por crime contra o regime democrático. Ataques a adversários políticos e justificação da violência contra eles. Confusão entre igreja, política, Estado e Governo. Perseguição a comunistas vistos em todo canto e absoluta falta de programa para a economia, para a educação, para a saúde, para a infraestrutura, para o meio ambiente.
Isso para não falar dos “resultados do governo”: inflação, preço dos combustíveis, imagem internacional do país, aumento do desemprego, da miséria e da fome. Precisaria de vários textos apenas para listar as atrocidades, os descasos e a incompetência que assistimos dia sim, outro também.
E, contudo, nada disso parece importar para os mais de 51 milhões de brasileiros que, no dia 2 de outubro, votaram pela reeleição do presidente. Desde então vejo incontáveis analistas em programas de televisão tentando encontrar explicações para o resultado. Afinal, perguntam, como quase metade dos eleitores é capaz de votar em Bolsonaro depois de tudo isso? E é com profunda tristeza que percebo que o problema dessas análises não está nas respostas que tentam produzir, mas na própria pergunta da qual partem.
Bolsonaro não teve mais de 51 milhões de votos “apesar” de ser quem é e de fazer o que faz; Bolsonaro obteve 51 milhões de votos exatamente “porque” é quem é e faz o que faz. É preciso parar de achar que as pessoas são cegas, que não compreendem o que está acontecendo com o Brasil. Elas veem, elas compreendem, e elas concordam. É preciso reconhecer que nunca fomos o povo simpático, acolhedor, honesto, tolerante, solidário e pacífico que nossos mitos pintaram.
Somos um povo que sempre flertou com a barbárie. Abolimos a escravidão, mas continuamos considerando os negros e os pobres uma espécie inferior, de moral menos digna. Esse sentimento é tão forte que conseguiu se impregnar entre os próprios pobres, que aprenderam a odiar uns aos outros acima da capacidade de olhar para a própria condição.
As redes sociais estão cheias de aposentados do INSS que odeiam pobres e abominam políticas sociais, mas são incapazes de olhar para o próprio umbigo e ver que seu filho de 40 anos só não passa fome porque continua pendurado no papai e na mamãe, muitas vezes sobrevivendo de suas aposentadorias.
O topo de nossa pirâmide social está cheio de médicos, advogados e engenheiros que estudaram em universidades públicas quando elas eram elitizadas e frequentadas por quem podia pagar os melhores cursos pré-vestibular. Mas hoje esses “cidadãos de bem” são justamente os que reproduzem fake news sobre essas mesmas universidades, as quais passaram a odiar porque elas foram democratizadas e se encheram de pretos, de pobres, de indígenas, de filhos de agricultores e de empregadas domésticas. Não, isso não é ser adepto do liberalismo – que, aliás, não conhecem; isso é ódio à democracia que dá aos pobres a oportunidade de dividir as salas de aula com seus filhinhos mimados, criados para acreditar que são melhores do que os outros. Não, isso não é defesa do enxugamento do Estado; isso é ódio de classe.
Você que lê esse texto, faça uma pequena pausa e tente listar os “cidadãos de bem” que você conhece que espumam de raiva ao falar de políticas sociais enquanto sonegam impostos? Quantos “pilares da família” que bradam aos quatro ventos lições de moral e bons costumes, mas forçam as amantes a fazer aborto para evitar escândalos familiares? Quantas madames com “famílias exemplares” que exploram e maltratam as empregadas domésticas e vão à missa no domingo rezar pelos humildes? Quantos moralistas de araque que amam tanto a família ao ponto de ter duas ou três, sustentadas com dinheiro de trambiques e impostos sonegados? Quantos religiosos que mentem, enganam e extorquem apertando a bíblia entre as mãos?
Quantos vizinhos e colegas de trabalho que estudaram com o FIES, que financiaram sua casa na Caixa Econômica com subsídio, que compram remédio da “farmácia popular”, que receberam auxílio emergencial (aquele que o governo não queria dar, mas que o Congresso obrigou), que compraram automóveis, máquinas e equipamentos agrícolas com o “Programa Mais Alimentos”, e que enchem a boca pra chamar de vagabundo quem perdeu o emprego e precisa de auxílio pra comprar comida pros filhos.
Quantos amigos que moram há décadas na cidade, mas falsificam contratos de arrendamento de terra com parentes do interior para conseguir bloco de produtor rural e se aposentar como agricultor? Quantos conhecidos do bairro que vão à igreja rezar em nome da opção de Jesus pelos oprimidos e excluídos da sociedade, e ao final do culto se reúnem na porta da igreja para falar mal do vizinho gay?
Pois é. Imagino que você deve ter feito uma lista mental bastante longa. Agora tente responder: em quem a maioria dessas pessoas votou no último dia 02 de outubro?
Não, eu não estou afirmando que todos os hipócritas, sonegadores, exploradores e moralistas de meia tigela sejam eleitores de Bolsonaro. Mas, admitamos, honestamente: a correlação entre essas coisas, que até poderíamos contestar antes, ficou muito mais evidente com as eleições do dia 02.
É verdade que a hipótese do “antilulismo” e do “antipetismo” ainda é bastante explorada, especialmente por “especialistas” de telejornal. Afinal, dizem, o segundo turno é uma disputa de rejeições, e tem gente que, mesmo não gostando de Bolsonaro, ainda assim tem muito mais aversão à Lula.
Mas então os institutos de pesquisa incluem, nos levantamentos sobre a intenção de voto, uma pergunta sobre o “motivo” de cada eleitor votar em quem diz votar, dando duas opções: “i) você vota nesse candidato por concordar com suas propostas e considerar que ele é a melhor opção?” ou; ii) “você vota nesse candidato para evitar que o outro vença as eleições?”. E eis que apenas 15% dos entrevistados se identificam com a segunda alternativa. Ou seja, 85% dos eleitores de Bolsonaro podem até ter algum sentimento “anti Lula”, mas não é por isso que decidem seu voto; é porque, acima de tudo, concordam e se identificam com o que Bolsonaro representa, prega e propõe fazer se reeleito. Se considerarmos os votos do primeiro turno, são mais de 43 milhões de eleitores que se sentem representados pelo atual presidente.
Acima de tudo, é isso que precisa ser melhor compreendido. A ciência política há muito tempo alerta para o fato de que a decisão de voto não é resultado de um cálculo racional. Emoções, sentimentos, imagem dos candidatos estão entre as variáveis que se combinam com avaliações pragmáticas na hora de decidir em quem votar. Mas o que presenciamos vai além disso.
O que vemos hoje é cerca de um terço dos eleitores de um país que tem 156 milhões deles optando por uma alternativa política que é escancaradamente contrária aos preceitos civilizatórios mais básicos. Não se trata de uma escolha entre muitas possíveis dentro de um sistema democrático; é a opção pela supressão dos próprios fundamentos da democracia. Não é ingenuidade de um povo pacífico e acolhedor que apenas quer combater a corrupção; é o empoderamento de uma parcela da sociedade que se orgulha de defender ideias fascistas.
São eleitores que exercem seus direitos democráticos em nome de um modelo que vislumbra a corrosão da democracia. Cidadãos que espalham terror nas redes sociais dizendo que, se a oposição vencer, o Brasil “vai se tornar uma Venezuela”, mas não veem problema no fato de seu candidato prometer, aos quatro ventos, adotar exatamente as práticas que levaram o país vizinho à autocracia e à miséria. O que se passa na cabeça dessas pessoas? Não percebem as contradições? Se percebem, não dão importância a elas?
De minha parte, como cientista político, mergulharei em novos estudos para compreender melhor esse fenômeno. Isso, claro, se ainda houver um país para pesquisar, e se pesquisar o país não se tornar um crime contra Deus, contra a pátria, contra a família, contra a liberdade, ou contra tudo isso ao mesmo tempo.
Que no dia 30 sejamos capazes de votar com nossas consciências, não com nossos fígados. E que Deus, caso exista, não permita que seu nome seja novamente usado em nome do fascismo. Ou, ainda melhor: que nos deixe em paz.