“Liberal na economia, conservador nos costumes”. Assim se
definem o atual presidente, membros de sua equipe de governo e boa parte dos
seus eleitores.
À primeira vista pode parecer algo interessante, uma versão
tupiniquim do liberalismo, mais uma de tantas adaptações (ou seria
empobrecimento?) de ideias e conceitos que fazemos há 500 anos. O problema é
que a expressão não faz sentido, não se sustenta. É conceitualmente equivocada
e historicamente estapafúrdia.
O liberalismo se consolida como teoria política entre o
final do século XVIII e início do XIX. Fruto do pensamento moderno e do
iluminismo, tem como elemento central o indivíduo enquanto agente racional,
cuja liberdade é um direito inalienável que cabe ao Estado assegurar e
promover.
A liberdade individual como primeiro, maior e mais
fundamental dos direitos. Eis o elemento estruturante do pensamento liberal,
que surge iminentemente como teoria política, não como teoria econômica (a
“versão econômica” do liberalismo é posterior, e trataremos dela em outro
texto). Liberdade de pensamento e ação, de expressão, de decisão sobre sua
própria vida. Liberdade, do indivíduo racional, para decidir o modo de viver
sua própria vida e o que fazer com ela, assumindo a responsabilidade por tais
decisões.
É por isso que o liberalismo, especialmente em sua
concepção clássica, preocupa-se também com a questão da igualdade,
especialmente a “igualdade no ponto de partida” ou, como costumamos dizer,
igualdade de condições. O pressuposto básico, aqui, é de que o exercício pleno
da liberdade só é factível por indivíduos autônomos, racionais e
suficientemente esclarecidos sobre as possibilidades que o mundo lhes dá para
decidir como viver suas vidas.
Igualdade no ponto de partida implica, entre outras coisas,
educação universal e de qualidade. Sim, países e governos liberais têm na
educação seu elemento estruturante. O uso autônomo da razão para exercer a
liberdade só é possível quando os indivíduos têm acesso ao conhecimento
socialmente produzido, especialmente o conhecimento científico.
A igualdade, portanto, não é incompatível com os ideais do
liberalismo. Ao contrário, ela é sua condição fundamental. Apenas indivíduos iguais,
em condições e perante a lei, podem de fato ser livres. A teoria liberal é,
nesse sentido, uma teoria moderna, e tem na emancipação do indivíduo, portanto,
seu princípio fundamental.
É por isso, por exemplo, que na Europa ser liberal
significa ser de esquerda. Os conservadores são, grosso modo, de direita.
Também pelos mesmos motivos o Partido Democrata, nos EUA, por defender os
princípios da liberdade de costumes e comportamento e por primar por políticas
mais igualitárias, é de esquerda.
Ora, ser “conservador nos costumes” pode ser qualquer
coisa, menos liberal. Pois o liberalismo é, acima de tudo, uma teoria que
propõe justamente a radicalização da liberdade no que diz respeito aos costumes
e ao comportamento como condição para a liberdade política plena.
É apenas na segunda metade do século XX, portanto muito
recentemente, que uma (re) leitura muito pobre e seletiva do liberalismo, de
vertente economicista, irá abrir mão do ideário político de emancipação do
indivíduo em nome da ideia de livre mercado com Estado mínimo. Surge, então, o
neoliberalismo de que tanto se fala atualmente. Ele é a aplicação, pobre e
bastante simplista, de alguns princípios do liberalismo ao campo da economia.
Ser “liberal na economia” é, em grande medida, ser neoliberal.
É assumir a tese de que os indivíduos, deixados “livres” para atuarem no
mercado e assumirem, sozinhos, a responsabilidade pelo sucesso individual,
produzem ganhos coletivos que resultam em um bem socialmente generalizado.
Embora tenha várias ressalvas a essa tese neoliberal, minha
questão, aqui, não é debatê-la. O que soa estranho aos ouvidos é a confusão
conceitual necessária para juntar liberalismo e conservadorismo na mesma
afirmação.
Bandeiras como a liberdade de comportamento, o combate ao
moralismo, liberdade sexual, autonomia para decidir o que fazer com a própria
vida e o próprio corpo, são a essência do liberalismo. Ser “conservador” em
tais questões não é apenas incompatível com o ideário liberal; é também sua
negação, seu oposto.
Por mais que vivamos épocas em que o rigor conceitual é
cada vez mais negligenciado em nome da subjetivação das interpretações, ainda
defendo a existência de certos limites para a “mixagem” de teorias e modelos
interpretativos do mundo e da sociedade. E a junção de liberalismo político com
conservadorismo demanda uma reengenharia teórico-conceitual que pode até dar
sentido ao casamento entre formulações neoliberais e convicções religiosas, mas
não faz nenhum sentido no campo do pensamento político.
Estimado colega. Concordo plenamente com você. Estou tentando escrever um texto para o evento da UNIPAMPA, procurando demonstrar como se dá uma aliança estratégica, embora contraditória, entre os neoliberais e os neoconservadores a serviço do capital financeiro, no caso brasileiro.
ResponderExcluir