quarta-feira, 24 de abril de 2019

LIBERAIS CONSERVADORES?


“Liberal na economia, conservador nos costumes”. Assim se definem o atual presidente, membros de sua equipe de governo e boa parte dos seus eleitores.

À primeira vista pode parecer algo interessante, uma versão tupiniquim do liberalismo, mais uma de tantas adaptações (ou seria empobrecimento?) de ideias e conceitos que fazemos há 500 anos. O problema é que a expressão não faz sentido, não se sustenta. É conceitualmente equivocada e historicamente estapafúrdia.

O liberalismo se consolida como teoria política entre o final do século XVIII e início do XIX. Fruto do pensamento moderno e do iluminismo, tem como elemento central o indivíduo enquanto agente racional, cuja liberdade é um direito inalienável que cabe ao Estado assegurar e promover.

A liberdade individual como primeiro, maior e mais fundamental dos direitos. Eis o elemento estruturante do pensamento liberal, que surge iminentemente como teoria política, não como teoria econômica (a “versão econômica” do liberalismo é posterior, e trataremos dela em outro texto). Liberdade de pensamento e ação, de expressão, de decisão sobre sua própria vida. Liberdade, do indivíduo racional, para decidir o modo de viver sua própria vida e o que fazer com ela, assumindo a responsabilidade por tais decisões.

É por isso que o liberalismo, especialmente em sua concepção clássica, preocupa-se também com a questão da igualdade, especialmente a “igualdade no ponto de partida” ou, como costumamos dizer, igualdade de condições. O pressuposto básico, aqui, é de que o exercício pleno da liberdade só é factível por indivíduos autônomos, racionais e suficientemente esclarecidos sobre as possibilidades que o mundo lhes dá para decidir como viver suas vidas.

Igualdade no ponto de partida implica, entre outras coisas, educação universal e de qualidade. Sim, países e governos liberais têm na educação seu elemento estruturante. O uso autônomo da razão para exercer a liberdade só é possível quando os indivíduos têm acesso ao conhecimento socialmente produzido, especialmente o conhecimento científico.

A igualdade, portanto, não é incompatível com os ideais do liberalismo. Ao contrário, ela é sua condição fundamental. Apenas indivíduos iguais, em condições e perante a lei, podem de fato ser livres. A teoria liberal é, nesse sentido, uma teoria moderna, e tem na emancipação do indivíduo, portanto, seu princípio fundamental.

É por isso, por exemplo, que na Europa ser liberal significa ser de esquerda. Os conservadores são, grosso modo, de direita. Também pelos mesmos motivos o Partido Democrata, nos EUA, por defender os princípios da liberdade de costumes e comportamento e por primar por políticas mais igualitárias, é de esquerda.

Ora, ser “conservador nos costumes” pode ser qualquer coisa, menos liberal. Pois o liberalismo é, acima de tudo, uma teoria que propõe justamente a radicalização da liberdade no que diz respeito aos costumes e ao comportamento como condição para a liberdade política plena.

É apenas na segunda metade do século XX, portanto muito recentemente, que uma (re) leitura muito pobre e seletiva do liberalismo, de vertente economicista, irá abrir mão do ideário político de emancipação do indivíduo em nome da ideia de livre mercado com Estado mínimo. Surge, então, o neoliberalismo de que tanto se fala atualmente. Ele é a aplicação, pobre e bastante simplista, de alguns princípios do liberalismo ao campo da economia.

Ser “liberal na economia” é, em grande medida, ser neoliberal. É assumir a tese de que os indivíduos, deixados “livres” para atuarem no mercado e assumirem, sozinhos, a responsabilidade pelo sucesso individual, produzem ganhos coletivos que resultam em um bem socialmente generalizado.

Embora tenha várias ressalvas a essa tese neoliberal, minha questão, aqui, não é debatê-la. O que soa estranho aos ouvidos é a confusão conceitual necessária para juntar liberalismo e conservadorismo na mesma afirmação.

Bandeiras como a liberdade de comportamento, o combate ao moralismo, liberdade sexual, autonomia para decidir o que fazer com a própria vida e o próprio corpo, são a essência do liberalismo. Ser “conservador” em tais questões não é apenas incompatível com o ideário liberal; é também sua negação, seu oposto.

Por mais que vivamos épocas em que o rigor conceitual é cada vez mais negligenciado em nome da subjetivação das interpretações, ainda defendo a existência de certos limites para a “mixagem” de teorias e modelos interpretativos do mundo e da sociedade. E a junção de liberalismo político com conservadorismo demanda uma reengenharia teórico-conceitual que pode até dar sentido ao casamento entre formulações neoliberais e convicções religiosas, mas não faz nenhum sentido no campo do pensamento político.

Um comentário:

  1. Estimado colega. Concordo plenamente com você. Estou tentando escrever um texto para o evento da UNIPAMPA, procurando demonstrar como se dá uma aliança estratégica, embora contraditória, entre os neoliberais e os neoconservadores a serviço do capital financeiro, no caso brasileiro.

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